terça-feira, 10 de maio de 2016

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Por onde andaram perdidos meus passos que a paisagem é outra? Ao fundo, numa depressão da linha verde-anil das colinas, polido como um espelho o cobre do mar oceano. Para cá, aloirada e brilhante do restolho»

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O medalhão de Ouro
«(…) Toda esta vasta área se anima de cenas particulares, de tarefas específicas, de actividades muito definidas, em dada quadra do ano..., mas as pessoas não têm rosto nem nome, são sempre uma generalização, os velhos, os novos, as crianças, um homem, uma mulher, uma rapariga..., ninguém individualmente assinalado, meu conhecido. Tomo com religiosa emoção esse como que livro de horas da minha vida e folheio ao acaso as suas iluminuras finamente lavradas na minha memória. As árvores na sua maioria já perderam as folhas. Ao longe, ao correr de um ribeiro, esbate-se na mancha mais escura, anilada, de montes baixos a fileira dos choupos esguios, de varas apontadas ao céu azul onde passa um bando de patos bravos e um esmerilhão plana calmamente em atentas volutas. Uma leira de terra está a ser arroteada. A junta de bois inclina-se para a frente no possante esforço de puxar o arado sobre o qual o lavrador se apoia para que o ferro entre bem no húmus. Noutro lado, em campo que já foi embelgado, o abegão avança, sacola no ombro, fazendo com o braço e a mão o gesto ritual e sagrado do lanço da semente e, para a cobrir, já a grade com as aguçadas puas anda a estorroar e afofar a terra. Uma voz ecoa nos meus ouvidos: quisesse Deus viesse chuva, que o chão não tinha lentura!
Numa cangosta o carro de bois, carregado de lenha apertada até cima entre os fueiros e cordas, vai seguindo devagar, nos eixos chiando a sua chorada melopeia. Um moço vareja as bolotas dos sobreiros. À sombra, por baixo, andam os porcos, grunhindo, comendo a tenra glande. De algumas árvores já foram extraídas grandes placas de córtex e o tronco desnudado, vermelho, a sangrar, contrasta com o cinzento-azulado da cortiça. De quantos outonos, de quantos novembros como este está povoada a minha experiência! A irmã natureza!... Que não tenho vocação para a vida monástica? Lá isso é verdade. Mas uma coisa é certa: sou franciscano de raiz e a terra, o céu, a água, as árvores, a seara, as sementes, as aves, os animais do campo, tudo faz eco dentro de mim e em mim canta, num hino magnífico, os louvores de Deus. Recordo outras estações do ano, outras tarefas, outras canseiras, que pelas suas características foi noutras regiões que me tiveram como espectador. Martius habet dies xxxj... A tosquia das ovelhas, o amanho dos pâmpanos, a chegada das andorinhas, o canto do rouxinol, os bandos de tordos..., mas onde foi isto? Onde?... E que casa era aquela que me persiste concreta na memória, mas que vejo só de fora? Porta larga, em arco, sem batentes, um boqueirão escuro que me impede de querer entrar... Por cima a janela quadrada, aberta, também negra para quem tivesse a veleidade de espreitar sequer o tecto. A seguir o telhado..., de uma água.
A ramada, em frente, a todo o correr da casa para formar dossel, a ser podada e atada por um moço meio sentado num degrau da escada arrimada à parede lisa. Em baixo, o poço de que uma cachopa tira água, um renque de árvores de fruto e a caniçada que veda da vinha a cortinha da casa. Mais adiante uma fiada de cortiços que alguém vigia, os coelhos à solta em redor e, à distância, penhascos alcantilados, arvoredo, um rio... Actividade febril. Por toda a parte homens e mulheres, que trabalham em ritmo certo mas vagaroso, quase mecânico, calados. De quando em quando, isolado, o canto triste de uma rapariga, enquanto num galho de árvore o pisco-ferreiro martela e tilinta a sua bigorna. Lá há-de vir, meses depois, o colher dos frutos. Augustus habet dies xxxj, luna xxx. nox habet horas xj, dies vo xiiij... Por onde andaram perdidos meus passos que a paisagem é outra? Ao fundo, numa depressão da linha verde-anil das colinas, polido como um espelho o cobre do mar oceano. Para cá, aloirada e brilhante do restolho, a vasta planície, em que se distinguem disseminados os vários armazéns da quinta com seus telhados de colmo, cheia de vida. Uma carroça de quatro rodas, tirada por duas juntas de bois, aguarda ao fundo que acabe de ser atulhada até ao cimo com o trigo recentemente ceifado que se vê, por toda a parte, arrimado em altas medas boleadas. Uma outra, a abarrotar, vem já mais perto, puxada por duas parelhas de muares que um moço de comprido varapau ao ombro vai guiando. Um carro de bois, ainda por descarregar, descansa com a cabeçalha no apoio, enquanto em volta, indiferentes à faina, porcos à solta esfocinham a terra e um bando de patos se passeia em fila desengonçada, grasnando». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT