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A jovem fora escolhida entre centenas de candidatas pela sua beleza, que não
devia ter qualquer defeito e tanto podia ser filha da nobreza como uma cativa ou
até uma escrava. O abraço do deus arrancá-la-ia para sempre à sua condição,
mas, terminada a noite, a eleita não se juntaria às servas de Ishtar dedicadas à
prostituição sagrada, iria para a coorte das sacerdotisas de Marduk, dedicadas apenas
ao deus e, portanto, à castidade perpétua, pelo menos oficialmente. De facto, como
o deus tinha poucas hipóteses de se manifestar em pessoa, era o seu sumo-sacerdote
que o encarnava, a menos que fosse de idade avançada ou estivesse em baixo de forma,
o que seria uma catástrofe para as colheitas seguintes. e nesse caso seria substituído
pelo próprio rei que, decerto, não se faria rogado.
Se a
sua companheira por uma noite soubesse cativá-lo, sua majestade não teria qualquer
dificuldade em fazê-la passar do templo para os aposentos femininos do seu palácio
e se o sumo-sacerdote, tendo oficiado, se apaixonasse, poderia encontrar com
toda a facilidade, no enorme dédalo do Esagil, aquela que tão forte impressão lhe
causara. Se nascesse uma criança, o que era frequente e considerado sinal indubitável
da benevolência de Marduk, esta destinar-se-ia, com toda a naturalidade, ao serviço
do deus seu pai... Entretanto, quando este entrasse na câmara dourada, a virgem
devia prostrar-se diante dele e recitar o poema de amor ritual vindo da antiga Suméria:
Tu cativaste-me,
deixa-me tremer diante de ti
esposo,
quero ser levada para o leito por ti
esposo,
deixa-ma acariciar-te
a minha
carícia amorosa
a minha
carícia amorosa é mais suave do que o mel…
E, o
que devia ser cumprido, cumpria-se. Seria preciso ser-se de pedra para se resistir
a um convite pronunciado por uma rapariga encantadora e vestida apenas com a sua
cabeleira. Em tal matéria os sacerdotes de Marduk não corriam qualquer risco e o
resultado era certo, tanto mais que a bela jovem, bem instruída, juntava o gesto
à palavra e apressava-se a demonstrar que as suas carícias eram, de facto, muito
mais doces e sobretudo mais sábias do que o mel. No entanto, antes de sucumbir à
vertigem, o deus devia olhar para o céu porque, segundo a tradição, Marduk só podia
possuir a sua companheira no momento preciso em que nascesse a estrela de Ishtar.
Só então o grande leito de marfim se transformaria em altar e o corpo intacto se
abriria para o amante divino. Porém, o casal não estaria só. Um sacerdote de Marduk,
o Vigilante Sagrado, estaria no terraço, perto da entrada da câmara. O seu dever
era anunciar ao povo que o acto se cumpria para que todos os seus votos e as
suas esperanças se realizassem.
Em baixo,
milhares de olhares fixavam-se na sua silhueta branca, tão pequena àquela altura,
e só a abandonavam depois de ele erguer os braços ao céu. Então estalava um grande
clamor e Babilónia, certa de ter obtido dos deuses a fertilidade das suas terras
e dos seus ventres, mergulhava numa frenética orgia de amor que durava até à alvorada...,
pelo menos para aqueles com energia suficiente para não se deixarem adormecer. Babilónia
considerava, assim, a mulher, e a virgem, uma companhia privilegiada do deus. Aliás,
parece que a noção de virgindade não existia como hoje antes da época sumeriana
porque os conhecimentos anatómicos ainda estavam na infância. Virgem era aquela
que nenhum homem tocara, virgem era qualquer rapariga nova. A ideia de virgindade
confundia-se com a da puberdade, durante a qual os seios começavam a crescer e o
corpo adquiria as formas femininas...
Daí o
costume no Ocidente, sobretudo nas famílias nobres, de casar as filhas ainda na
puberdade, uma maneira como outra qualquer de tomar precauções contra eventuais
surpresas desagradáveis, as quais não perturbavam muito os homens das civilizações
antigas porque era frequente, entre os povos mediterrânicos, oferecer aos
deuses a virgindade das raparigas, levando-as aos templos para ali serem desfloradas
ritualmente por sacerdotes investidos do poder dos deuses. Uma homenagem, sem dúvida,
mas também uma precaução porque o mistério do corpo feminino ainda selado inspirava
alguma inquietação. Ninguém sabia que perigos, que malefícios, que demónios se podiam
esconder na húmida obscuridade do ventre de uma virgem. Ao entregá-la a um deus,
afastavam-se todos os medos: o sagrado tomava o risco a seu cargo, traçava o caminho
no qual, em seguida, o eventual esposo entrava com toda a tranquilidade. Encontramos
entre os Hebreus, nos Provérbios, vestígios dessa velha crença do homem face ao
mistério feminino:
Há
três coisas que são um mistério para mim
e uma
quarta que não compreendo:
o voo
da águia nos céus,
o
rasto da cobra sobre a rocha,
o rumo
de um navio em pleno mar
e a atitude
do homem para com a donzela...
Desde
Eva, essa inocente, causa de toda a alegria e sofrimento do homem, que se deixou
cair no pecado com tanto júbilo, que a mulher adquiriu o direito imprescritível
à suspeita e à desconfiança masculinas, razão pela qual o entusiasmo com que os
antigos levavam as filhas ao leito dos deuses ou dos seus representantes, razão
pela qual a existência do antigo princípio do famoso direito do senhor
feudal, posto em prática por ocasião do aparecimento do cristianismo, após a
falência dos velhos deuses». In Juliette Benzoni, Na Cama dos Reis,
Noites de Núpcias, 2010, tradução de Nuno Lorena, Planeta Manuscrito, Lisboa,
2012/2013, ISBN 978-989-657-351-5.
Cortesia
de PlanetaM/JDACT