jdact
Toccata
«(…)
A verdade é que nos estamos nas tintas para a última crise ministerial, mas de
que mais havemos de falar? Eliminem-se os pensamentos do mesmo género, e toda a
gente terá de reconhecer como eu que não resta muita coisa. Há, bem entendido,
momentos diferentes. Inesperado entre dois anúncios de detergente, um tango de
antes da guerra, digamos que a Violetta,
e eis que ressurgem o murmurar nocturno do rio, as lanternas do bar, o leve cheiro
a suor na pele de uma mulher alegre; à entrada de um parque, o rosto sorridente
de uma criança traz-nos de regresso o do nosso filho, justamente pouco antes da
altura em que começou a andar; na rua, um raio de sol trespassa as nuvens e ilumina
as grandes folhas, o tronco alvacento de um plátano: e pensamos bruscamente na
nossa infância, no pátio de recreio da escola onde brincávamos à guerra uivando
de terror e de felicidade. Acabamos de ter um pensamento humano. Mas é muito raro.
Ora se
suspendermos o trabalho, as actividades banais, a agitação de todos os dias,
para nos entregarmos seriamente a um pensamento, as coisas passam a ser completamente
outras. Depressa as coisas começam a vir à tona, em vagas densas e negras. À noite,
os sonhos desarticulam-se, desdobram-se, proliferam, e ao despertar deixam uma fina
camada acre e húmida na cabeça, que leva muito tempo a dissolver-se. Nada de mal-entendidos:
não é de culpabilidade, de remorsos que aqui se trata. Isso existe também, sem dúvida,
não quero negá-lo, mas penso que as coisas são muito mais complexas. Até mesmo um
homem que não fez a guerra, que não teve de matar, sofrerá aquilo de que estou a
falar. Regressam as pequenas maldades, a cobardia, a falsidade, os gestos mesquinhos
que afligem todo e qualquer homem. Não é de admirar por isso que os homens
tenham inventado o trabalho, o álcool, as conversas fiadas estéreis. Não é de admirar
que a televisão tenha tanto sucesso. Em suma, em breve pus fim ao meu período de
licença inoportuno, mais valia assim. Tinha tempo suficiente com efeito, à hora
de almoço ou ao fim da tarde depois de as secretárias saírem, para me pôr a garatujar.
Uma
breve pausa para ir vomitar, e recomeço. É mais outra das minhas numerosas pequenas
aflições: de vez em quando, as minhas refeições voltam a vir-me à boca, por vezes
logo a seguir a tomá-las, por vezes mais tarde, sem razão, assim sem mais. É um
velho problema, uma coisa que data da guerra, que começou no Outono de 1941
para ser mais preciso, na Ucrânia, em Kiev penso eu, ou talvez em Jitomir. Também
disso hei-de falar sem dúvida. Seja como for, desde então habituei-me: escovo
os dentes, engulo um pequeno copo de álcool, e continuo o que estava a fazer. Voltemos
às minhas recordações. Comprei vários cadernos escolares, de grande formato mas
de quadriculado pequeno, que guardo na minha secretária dentro de uma gaveta fechada
à chave. Antes, rabiscava notas em fichas de papel brístol, também com uma
quadrícula miúda; agora, decidi retomar tudo isso de uma assentada. Para quê,
não sei lá muito bem. Decerto que não para edificar a minha descendência. Se neste
mesmo instante eu sucumbisse subitamente, de uma crise cardíaca, digamos, ou de
uma embolia cerebral, e as minhas secretárias pegassem na chave e abrissem esta
gaveta, teriam um choque, as pobres, e o mesmo se diga da minha mulher: as fichas
em papel brístol serão largamente suficientes. Vai ser dentro em breve
necessário queimar tudo isto para evitar o escândalo. Quanto a mim, tanto me faz,
estarei morto. E bem vistas as coisas, ainda que me dirija aos que me lêem, não
é para eles que escrevo.
O meu
gabinete é um sítio agradável para se escrever, grande, sóbrio, tranquilo. Paredes
brancas, quase sem decoração, um móvel de vitrina para as amostras; e ao fundo uma
grande parede envidraçada que dá sobre a casa das máquinas. Mesmo com vidros
duplos, o estalido incessante dos teares Leavers enche a sala. Quando quero pensar,
deixo a minha mesa de trabalho e vou pôr-me diante do vidro, contemplo os teares
alinhados aos meus pés, os movimentos seguros e precisos dos tecelões, deixo-me
embalar. Por vezes, desço para deambular entre as máquinas. A sala é escura, os
vidros sujos estão pintados de azul, porque a renda é frágil, tem medo da luz, e
essa claridade azulada repousa-me o espírito. Gosto de me perder um tanto no
bater monótono e sincopado que domina o espaço, esse compasso metálico a dois tempos,
obsidiante. Os teares continuam a impressionar-me. São de ferro fundido, pintaram-nos
de verde, e cada um deles pesa dez toneladas. Alguns são muito velhos, deixaram
de ser produzidos há muito tempo; as peças para reparação, mando-as fazer de
encomenda; é certo que passámos, a seguir à guerra, do vapor à electricidade, mas
quanto às próprias máquinas não lhes tocámos. Não me aproximo delas para evitar
sujar-me: as suas muitas peças móveis têm de ser constantemente lubrificadas, mas
o óleo, evidentemente, arruinaria as rendas, por isso recorre-se à grafite, uma
mina de chumbo triturada com que o tecelão salpica os órgãos em movimento com o
auxílio de uma meia, manejada como um turíbulo. A renda fica negra de grafite, e
esta cobre as paredes, e do mesmo modo o chão, as máquinas e os homens que as vigiam.
Ainda que não lhes toque muitas vezes, conheço bem estes grandes aparelhos mecânicos».
In
Jonathan Littell, As Benevolentes, 2006, Publicações Dom Quixote, 2014,
Alfragide, ISBN 978-972-20-3304-6.
Cortesia
PdomQuixote/JDACT