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A
pedra do exílio
Planalto
de Crécy. 26 de Agosto de 1346
«(…)
Fabrico tapeçarias, senhor, respondeu o homem, analisando as fivelas que ainda
tinha de soltar, e quero que o meu filho dê continuidade a esta arte numa
cidade mais opulenta do que aquela em que cresci. De repente, interrompeu o
discurso e apontou para a zona onde a seta estava cravada. Diacho!, exclamou. Infelizmente
fostes atingido na ligação entre a coxa e a canela. Muitos dos meus
companheiros depararam com um destino bem pior, replicou Maynard, com amargura.
Removei esses fragmentos com cuidado, pediu-lhe depois, a perna dói-me bastante.
Ainda não vos tínheis queixado, se bem me parece, gracejou o tapeceiro. Logo
que ficou livre da armadura, o cavaleiro permitiu-se um suspiro de alívio. Por
baixo da mesma, trazia vestidos uma casaca justa e um par de ceroulas
completamente sujas, mas não se preocupou com isso. Poder mexer-se sem a
armadura a estorvá-lo transmitia-lhe uma agradável sensação de leveza. Jérôme
inclinou-se sobre a ferida. Não posso fazer mais, lamento, murmurou,
consultando o filho. Se arriscasse extrair-vos a seta, poderia ser pior... Não
receeis, irei ensinar-vos. Maynard vira tratar feridas semelhantes uma
infinidade de vezes e, dispondo de dois ajudantes, estava certo de conseguir
tratá-la. Desembainhou o punhal e usou-o para cortar as ceroulas até ao joelho,
destapando a perna avermelhada e tumefacta. Só o facto de olhar para ela
acentuou o seu sofrimento.
A
vermelhidão tendia para o escuro, ao ponto de temer uma gangrena. Fareis como vos
indicar, continuou, procurando esconder a preocupação. Deveis extrair a seta
com um gesto decidido, ao meu sinal, e depois limpar a laceração com vinho ou
vinagre. Além disso..., deu o punhal a Nicolas, cauterizareis a ferida com
isto. Não seria melhor procurar ajuda?, perguntou o tapeceiro, hesitante. Os
soldados que escaparam a Eduardo III não andarão muito longe. Entre eles, deve
haver algum cirurgião capaz de vos tratar. A estas palavras, o cavaleiro foi
invadido pela inesperada esperança de se reunir aos companheiros. Era provável
que o rei Filipe VI tivesse recuado para sul, para Fontaine ou Amiens, a fim de
deixar em segurança o que restava do exército e organizar a contraofensiva.
Devia tentar juntar-se-lhe. Mas a ferida não podia esperar. Se passar mais um
dia, arrisco-me a perder a perna... Por outro lado, estou demasiado fraco para
me tratar sozinho. Franziu a testa, tornando-se quase ameaçador. Assim sendo,
tendes de me ajudar. Já.
Tudo
ficou pronto em pouco tempo. A mulher de Jérôme preparou um frasco de vinagre e
faixas de tecido para usar como ligaduras, enquanto Nicolas colocou o punhal sobre
as brasas. O cavaleiro chamou pai e filho para junto de si. Se tivesse sido
atingido na coxa ou na barriga da perna, explicou, pedir-vos-ia que empurrassem
a seta até a fazerem sair pelo lado oposto ao da entrada; portanto, seria suficiente
cortá-la e puxá-la... Infelizmente, não podemos agir dessa forma. A ponta está a
tocar no osso, não há outra solução senão arrancá-la. Nicolas tentou intervir, mas
calou-se. Arrancá-la à força, sem hesitar, continuou Maynard. Vai doer-me muito,
a carne irá lacerar, mas não deveis distrair-vos da vossa missão. E, depois, limpareis
a ferida. Com uma expressão pouco convicta, Jérôme apertou os dedos em volta da
seta. Muito bem, não percamos tempo. Estava alagado em suor e temia quase tanto
como se tivesse de a retirar da própria perna. Um segundo, deteve-o o cavaleiro.
Sou primeiro obrigado a pedir-vos outro serviço. Faço-o agora, no caso de perder
os sentidos devido à dor. Estou a ouvir-vos, senhor. Se, de caminho, encontrardes
vestígios da passagem do exército francês, peço-vos que me acompanheis até à presença
dos meus irmãos de armas. O tapeceiro estudou-o, perplexo. E a minha família não
ficará em perigo? Muito pelo contrário. Como vos disse, sereis recompensado. Está
bem. Então, coragem, exortou-o Maynard. Vamos!
Jérôme
assegurou-se de que Nicolas tinha a perna bem imobilizada, agarrou na seta e, com
um gesto seco, arrancou-a. Maynard deu um salto, de olhos arregalados, e lançou
um grito terrível, desafogando a dor, juntamente com a raiva, o medo e a humilhação.
Um grito que trazia consigo desde a noite anterior. Depois caiu de costas, com a
testa perlada de suor, lutando contra o sofrimento, enquanto as ligaduras
embebidas em vinagre começavam a queimar-lhe a ferida. Ouviu a voz da rapaz: a seta
está intacta... E em seguida a de Jérôme: limpa-lhe o sangue... Está aqui o punhal...
Segura-o! Agora! Agora! E, finalmente, o chiar das brasas, o ferro aquecido
sobre a carne.
Maynard
gritou novamente. A gargalhada brutal de um homem dilacerou-lhe a memória como uma
adaga. Mais dor e, por fim, a imagem do pai deitado sobre Eudeline». In
Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro,
Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.
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