sábado, 21 de maio de 2016

O Estranho Caso de Sebastião Moncada. João Pedro Marques. «O viajante parecia agradado com o que via e perguntou, dirigindo-se ao estalajadeiro: o que tens para a ceia? Borrego, senhor. Borrego, broa, uma sopa de couve acabadinha de fazer e sobremesa, claro está»

jdact

O mistério da Foz
«(…) O viajante parou no vestíbulo, olhou em redor, inspecionando o local. Demorou-se nos travejamentos do tecto, nas várias janelas poeirentas que amorteciam a luz, num quadro que coloria a parede com uma movimentada cena de caça, na porta remota ao fim do corredor. Olhou para todos os quadrantes e só depois disse o que pretendia: precisamos de um quarto para esta noite e a próxima. Quero o melhor que tenhas, exigiu. O preço é o que está ali?, perguntou, indicando com um esticar do queixo a pequena tabuleta de madeira que se erguia a meio do balcão, logo a seguir à campainha. Sátiro Costa assentiu timidamente com a cabeça. Ainda pensou fazer mais barato, mas o recém-chegado não lhe deu tempo para isso. Muito bem. Arranja-nos água quente para nos lavarmos. Costa obedeceu de pronto e ordenou para o cimo das escadas, elevando a voz: Maria, leva água quente para o quarto grande. Depressa! Os viajantes iam-se dirigindo agora para a sala de jantar e ao vê-los entrar naquele espaço mortiço o estalajadeiro sentiu-se tomado de uma constrangedora vergonha. A divisão parecia-lhe demasiado escura, boa para marinheiros e outras aves de arribação mas imprópria para acolher gente daquela estirpe. Onde anda este rapaz que se esqueceu das luzes?, protestou, a meia-voz.
Ele próprio riscou pressurosamente um fósforo e acendeu algumas velas. Primeiro, claro está, as dos dois castiçais de parede, com espelhos reflectores. Depois algumas outras. A luz amarelada e ainda hesitante revelou uma divisão ampla cheia de mesas quadrangulares. A criada de touca e avental branco que as limpava parou, intrigada, de pano na mão e expressão respeitosa. Ao fundo, semiescondida atrás da parede que separava a sala da cozinha, a cozinheira negra afadigava-se em redor do panelão da sopa. Grandes rolos de vapor escapavam-se pela chaminé e o lume do fogão de alvenaria fazia rebrilhar, em tons avermelhados, os vários utensílios de cobre pendurados nas paredes bem como os pratos e os frascos, que enchiam as prateleiras. No lado oposto da sala, um grande fole pendia de uma escápula, na parede, e junto a ele uma lareira apagada abria a sua bocarra enegrecida numa promessa de futuros confortos de Inverno.
O viajante parecia agradado com o que via e perguntou, dirigindo-se ao estalajadeiro: o que tens para a ceia? Borrego, senhor. Borrego, broa, uma sopa de couve acabadinha de fazer e sobremesa, claro está. Doces aqui do Porto. Ah, acrescentou com o indicador bem espetado no ar, e bom vinho do Douro. Muito bem, ceamos daqui por duas horas. Arranja-nos uma mesa à parte... Não queremos ser incomodados. Os hóspedes subiram a escada, à frente do rapaz que ia carregando, esforçadamente, as bagagens para cima. Voltaram cerca de duas horas depois e instalaram-se numa mesa afastada, posta expressamente para eles numa ponta da divisão. O estalajadeiro mandara acender todas as velas e a sala de jantar resplandecia como nas melhores horas de antigo fausto da sua estalagem. Pusera-se uma noite clara e silenciosa, igual às dos últimos dias, e lá fora, ao fundo dos rochedos e da areia, o mar adormecia numa placidez melancólica.
Maria, apaziguada pela presença daqueles desconhecidos de bom trato, moderara os seus ímpetos e serviu a sopa com um cuidado extremo para não entornar as tigelas fumegantes. Os viajantes comiam devagar, com modos pausados, mas percebia-se que a jovem senhora estava tensa. De tempos a tempos lançava olhares nervosos, temerosos, para a janela mais próxima. O homem, pelo contrário, parecia tranquilo e seguro de si. Falava muito, fazia gestos veementes, abrindo os braços e explicando qualquer coisa ou desculpando-se de alguma falta. Às vezes tomava a mão da senhora e beijava-a com ternura e enlevo. Os seus olhos azuis brilhavam, então, com uma luz entusiasmada e pareciam maiores quando fixavam os olhos dela. À distância, Sátiro Costa ia observando a cena e fervendo num lume de muitas curiosidades. Que gente seria aquela que ali lhe surgira envolta numa nuvem de pó e de mistério? De onde vinham e para onde iriam? Por que razão estavam na sua estalagem e que laço uniria aqueles dois? As perguntas e as conjecturas vinham-lhe sem parar ao cérebro e desinquietavam o seu temperamento efeminado. Decidiu ser ele mesmo a servir a carne, para poder apanhar qualquer coisa que lhe revelasse uma ponta daquele enigma. Na altura própria, aproximou-se da mesa com uma travessa bem fornecida de borrego, couves, castanhas e batata. A jovem mulher olhava de novo, apreensivamente, para a janela. O homem, como se lhe lesse a alma, tocava-lhe meigamente na mão e fazia um sorriso prazenteiro e confiante que encorajava o sorriso vago e desfalecido dela». In João Pedro Marques, O Estranho Caso de Sebastião Moncada, Porto Editora, 2014, ISBN 978-972-004-495-2.

Cortesia de PEditora/JDACT