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«Nas duas semanas seguintes, a visão repete-se
a cada dois ou três dias. Estou metida na minha própria vida e depois, bang, estou num anúncio de Smokey the Bear.
Habituo-me a esperar que aconteça às horas mais estranhas, no caminho para a escola,
no chuveiro, ao almoço. Outras vezes, fico com a sensação, sem ver a visão em
si. Sinto o calor. Cheiro o fumo. Os meus amigos reparam. Arranjam-me uma nova
alcunha: Cadet, de Space Cadet. Podia ser pior. Os meus professores
também reparam. Mas faço o que é preciso, por isso não me chateiam muito quando
passo o tempo de aulas a escrevinhar no meu diário sobre assuntos que não
poderão ter nada a ver com as aulas. Se olhassem para o meu diário há uns anos
atrás, para aquele diário cor-de-rosa e felpudo que tinha com doze anos de
idade com a Hello Kitty na capa, o qual trancava com uma franzina chave dourada
que usava num fio que trazia ao pescoço, para o salvaguardar dos olhos
bisbilhoteiros de Jeffrey, veriam os devaneios de uma menina perfeitamente
normal. Tem rabiscos de flores e de princesas, entradas sobre a escola e o
tempo filmes de que gostei, música ao som da qual dançava, o meu sonho de
representar o papel da Fada do Açúcar em O Quebra-Nozes; e sobre Jeremy Morris
ter mandado um dos seus amigos perguntar se eu queria ser sua namorada, e claro
que disse que não, afinal, porque haveria de sair com alguém demasiado cobarde
para me convidar pessoalmente? Depois vem o diário sobre assuntos de
anjo, o qual iniciei quando tinha catorze anos. Trata-se de um caderno com um
lombada em espiral, de um azul muito escuro, com a imagem de um anjo na capa, de
um anjo sereno e feminino que se parece misteriosamente com a mãe, com cabelos
ruivos e asas douradas, de pé numa ponta do quarto crescente, rodeado de
estrelas, com raios de luz a irradiarem da sua cabeça. Nele escrevi tudo o que
a mãe me contou sobre os anjos e os sangue-de-anjo, todos os factos e todas as
especulações que consegui arrancar-lhe. Também registei nele as minhas
experiências, como da vez em que cortei o meu antebraço com uma faca só para ver
se sangrava (e sangrei, bastante) e depois anotei cuidadosamente o tempo que demorou
a sarar (cerca de vinte e quatro horas, desde que me cortei até que a cicatriz
cor-de-rosa desapareceu por completo), da vez que falei suaíli com um homem no
aeroporto de São Francisco (imaginem o espanto de ambos), ou de conseguir fazer
vinte e cinco grandes saltos no chão do estúdio de ballet sem perder o fôlego.
Foi nessa altura que a minha mãe me começou a repreender seriamente para que
mantivesse a calma, pelo menos em público. Foi nessa altura que comecei a
descobrir-me, não apenas à Clara, a rapariga, mas também à Clara, a
sangue-de-anjo, Clara, a sobrenatural. Neste momento, o meu diário (simples,
preto) focaliza-se inteiramente no meu propósito: desenhos, anotações, e
pormenores acerca da visão, especialmente quando estes envolvem o rapaz
misterioso. Ele permanece constantemente na orla da minha mente, à excepção dos
momentos desorientadores em que ele se desloca, de forma cegante, para o centro
do palco. Começo a conhecê-lo pela forma que assume na minha mente. Conheço a
extensão dos seus ombros largos, o seu cabelo cuidadosamente desgrenhado, o
qual é escuro, de um castanho quente, suficientemente comprido para cobrir as
suas orelhas e roçagar o seu colarinho junto à nuca. Mantém as mãos enfiadas
dentro dos bolsos do seu casaco preto, que é um tanto felpudo, reparo, talvez de
lã. O peso dele está sempre ligeiramente apoiado sobre um dos pés, como se se
preparasse para se afastar. Tem um aspecto magro, mas forte. Quando começa a
voltar-se, consigo ver o mais leve esboço da sua face, e isto faz sempre com
que o meu coração bata mais depressa e com que a respiração se prenda na minha
garganta. O que pensará ele de mim?, interrogo-me. Quero ser espantosa. Quando aparecer atrás
dele na floresta, quando ele finalmente se voltar e me vir ali, quero pelo
menos parecer-me com um anjo. Quero ser luminosa e etérea como a minha mãe. Não
sou feia, eu sei. Todos os sangue-de-anjo são relativamente atraentes. Tenho
uma pele bonita e os meus lábios são naturalmente rosados, e por isso nunca uso
nada além de batom gloss. Tenho uns joelhos muito atraentes, pelo menos é o que
me dizem. Mas sou demasiado alta e magra, não à maneira elegante das supermodelos
mas à maneira das cegonhas, só braços e pernas. E os meus olhos, que às vezes
aparentam ser de um cinzento de nuvens tempestuosas e outras de um azul, metalizado,
parecem ser demasiado grandes para o meu rosto». In Cynthia Hand, Celestial, 2010,
tradução de Marta Teixeira Pinto, Saída de Emergência, 2011, ISBN
978-989-637-306-1.
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