segunda-feira, 23 de maio de 2016

Joana .A Louca. Linda Carlino. «A guerra de orgulho que empreendera contra a rainha francesa, e que causara uma partida apressada, teve como consequência uma profunda desarmonia, que os difíceis meses que se seguiram nada ajudaram a resolver»

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«(…) A rainha Ana ergueu-se, num ruge-ruge cintilante de cetins brancos, e abandonou apressadamente a igreja, seguida de perto pelas aias. As damas de Joana juntaram-se ao redor dela, ansiosas por murmurar o seu apoio e louvor, mas ela mandou-as calar. Na sua ira, a rainha cometeu infelizmente um grosseiro erro de etiqueta. Os convidados devem sempre sair primeiro da igreja. Se a multidão lá fora está à espera de ver se a seguimos servilmente, ficará desapontada. Sairemos a nosso tempo e seguiremos directamente para os meus aposentos. Caminharam lentamente pela nave, dando às esculturas, aos trípticos e às estátuas pintadas a maior das atenções. Maria veio sussurrar-lhe que, na verdade, a rainha esperava na rua, talvez por se ter recordado das boas maneiras e de que o povo da cidade não iria embora sem ter primeiro satisfeito a sua curiosidade. Então, minhas damas, se estivermos todas prontas, prossigamos. Emergiram sob o sol de Dezembro, Joana e o seu pequeno exército de aias, avançando como cruzados contra os infiéis. Sem um olhar à direita ou à esquerda e as cabeças bem erguidas, passaram pela rainha Ana, directo ao palácio do conde. Assim que se acharam dentro de portas, desataram a correr freneticamente, num alvoroço de saias e risos, até aos aposentos de Joana. Acho que para o jantar temos de usar algo que nos distinga sem qualquer dúvida.
E foi uma azáfama no seio das aias. Saias, mangas, vestidos, meias, corpetes espalhados por todo o lado, alguns à espera de ser escolhidos, outros postos à parte. Do caos emergiu Joana, uma metamorfose perfeita. Fora uma beleza flamenga. Agora era uma radiosa princesa espanhola. Olhou-se ao espelho e observou cada pormenor do seu traje: o capuz negro, o vestido de decote subido, o corpete longo, as saias almofadadas, tudo a proclamava como espanhola. Dona Joana e as suas damas estavam prontas para o banquete. Estava pronta para o inimigo. Apreciando a ideia de que um dos segredos do sucesso na batalha reside no elemento da surpresa, o que provara já duas vezes naquele dia, partiu para o que sabia ser uma noite diferente. E foi-lhe dada razão em todos os aspectos. Não podia ter-se sentido mais satisfeita quando a rainha francesa deparou-se com aquela personificação da Espanha. A rainha Ana tentou manter a compostura, enquanto exigia uma explicação, sentindo-se cada vez mais desconfortável no seu vestido demasiado real e no manto de veludo carmesim e pele de arminho. Escolhera deliberadamente aquele traje para exigir respeito e a devida deferência daquela senhorinha espanhola, que, assim parecia, tinha de ser recordada de que não passava de uma princesa casada com um duque qualquer.
Joana teria respondido a ela, mas Luís e Felipe entraram. As feições carnudas do rei estremeceram de raiva e o choque do marido transformou-se em fúria. Imperturbável, o queixo esticado para a frente, anunciou: houve duas quebras de etiqueta esta manhã, pelas quais ainda não recebi um pedido de desculpas. Achei que era altura de recordar a todos que não sou apenas a arquiduquesa da Áustria, apenas a princesa Joana de Castela. Sou a princesa das Astúrias, herdeira de toda a Espanha e dos seus vastos domínios. Fez uma reverência, ciente de que a situação era difícil, embora não tivesse sido causada apenas por ela. Chegara a vez de o rei Luís usar de toda a sua diplomacia. A quem iria enfurecer mais, Espanha ou Felipe? Nenhum, de preferência, pensou ela, pois ambos eram vitais aos seus planos. Profundamente satisfeita por ter levado a bom termo a sua missão em nome da Espanha, esperou que o rei Luís abrisse o caminho até ao salão do banquete.
A guerra de orgulho que empreendera contra a rainha francesa, e que causara uma partida apressada, teve como consequência uma profunda desarmonia, que os difíceis meses que se seguiram nada ajudaram a resolver. Chuvas torrenciais e tempestades de granizo e neve tornaram a sua passagem pela França uma infelicidade total. E ainda faltava o pior. Para se preparar para a viagem através dos Pireneus, todas as suas posses e todos os seus haveres tinham de ser transferidos das enormes carroças puxadas por bois para o dorso de mulas espanholas. Utensílios de cozinha, faqueiros, mobílias, acessórios e roupas tiveram de ser organizados em pequenos fardos fáceis de equilibrar. Isto foi levado a cabo enquanto os céus se desfaziam numa chuva gelada e ininterrupta, que lhes dificultava todos os movimentos. Utensílios de prata e ouro enlameados, protegidos por palha encharcada, eram embrulhados em panos igualmente encharcados. Caixotes e arcas escorregavam das mãos enlameadas e caíam em poças enlodadas, espalhando normalmente o seu conteúdo; alguns artigos perdiam-se para sempre, outros arranjavam novos donos. Finas tapeçarias de seda enroladas em protecções à prova d’água dependuravam-se, como cadáveres, sobre o dorso das mulas, pingando desconsoladamente. O mau humor desgastava-se e pragas de frustração juntavam-se aos gritos angustiados dos animais, igualmente infelizes por fazerem parte daquele caos. Um a um, foram-se aprontando, juntando-se ao longo comboio que iria chafurdar na direcção dos desfiladeiros das montanhas. À frente seguiam Joana e Felipe com os seus escudeiros, todos embrulhados em peles, lenços e capas à prova de água, uma longa coluna deprimente, arrastando-se numa viagem de pesadelo, através de trilhos de cabras, batalhando contra ventos cortantes e tempestades de neve ofuscantes». In Linda Carlino, That Other Joana, 2007, Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa, 2009, tradução de Isabel Nunes, ISBN 978-972-23-4231-5.

Cortesia de EPresença/JDACT