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A
profecia da Normanda. 1130-1131
«(…)
A visada protestou. Aquela bela e graciosa mulher, de cabelos negros e tremendo
bom senso, cuja perna era curta mas a mão dotada para os repastos, logo alegou que
todos tinham comido as suas iguarias e mais ninguém se queixara. Decerto Chamoa
estava ainda frágil devido à apressada fuga do Mosteiro de Vairão, pagando o
preço de tamanha ousadia, perorou Teresa Celanova. Infelizmente, também ela estava
equivocada. Algum tempo depois de o curandeiro chegar, Maria veio à sala e
pediu ao meu melhor amigo que a acompanhasse. Nesse momento, pressenti que algo
estava errado, pois minha mulher apresentava-se demasiado pálida. Levantei-me
também e acerquei-me dela, enquanto Afonso Henriques caminhava na direcção do curandeiro.
Está de esperanças..., murmurou a minha Maria. Uma tonta euforia
invadiu-me, o meu melhor amigo ia ser pai! Com o desconhecimento que os homens sempre
têm do misterioso funcionamento das entranhas femininas, julguei que naqueles curtos
sete dias acontecera um milagre da gestação e Chamoa esperava um rebento já concebido
em Guimarães. No entanto, Maria Gomes esmagou as minhas tolas expecptativas e murmurou:
não é dele.
As minhas
ideias baralharam-se, ao mesmo tempo que olhava para a cara do meu melhor amigo,
uns metros à minha frente, a falar com o curandeiro, percebendo que também o príncipe
estava confundido, enquanto o indivíduo, esfregando as mãos, lhe dizia com um sorriso
cúmplice, certo de que falava com o autor da proeza: já está prenhe há mais de dois
meses! Músculo a músculo, vi o rosto de Afonso Henriques desfigurar-se, torcendo-se
de tensão e incredulidade. Era como se uma fúria imensa, uma colossal tempestade,
se estivesse a gerar dentro dele. Eu conhecia os seus célebres acessos de cólera,
era capaz de partir os móveis de uma sala aos pontapés e até de matar alguém. Aterrado,
decidi intervir, criticando o curandeiro: que disparate dizeis? Atrapalhado, o homem
justificou-se: algures em Setembro a rapariga concebera, mas a sua saúde estava
forte, seria uma gravidez certamente bem-sucedida, como haviam sido as três anteriores.
Vi Afonso Henriques cerrar os olhos e virar-se de costas para o atarantado curandeiro,
que nada percebia. Ainda era duro para o meu amigo ouvir falar nos três filhos que
Chamoa tivera de Paio Soares e senti que a qualquer momento se daria a sua explosão
de raiva, por isso dei ordens ao curandeiro para se afastar. Depois, calmamente,
esperei. E a tempestade veio.
De olhos
semicerrados, com um esgar de sofrimento estampado no rosto, possuído por um desvario
próximo da loucura, como se me olhasse sem me ver, Afonso Henriques rosnou: como
é isto possível? Com quem me traiu ela? Chamoa estivera ano e meio no Mosteiro de
Vairão, supostamente reclusa. Com quem dormira? Traidora!, rugiu Afonso
Henriques. Chifrou-me, mais uma vez! Intempestivo e precipitado, como sempre foi,
o príncipe de Portugal fora já minado pela doença da desconfiança e o seu intenso
orgulho começava a cegá-lo. Embora a rapariga não o tivesse traído, pois em Setembro
eles ainda não estavam juntos, aquela desagradável descoberta era sentida como
uma profunda infidelidade e, sem perder tempo, o furioso príncipe entrou no quarto
aos gritos. Chamoa encontrava-se sentada na cama, em cima das desordenadas mantas,
dos cobertores e das almocelas, ainda amarrotadas pela noite quente do casal. Mesmo
no meio de tanta agitação, espantei-me com a inigualável beleza da minha cunhada.
Com os seus ondulantes cabelos cor de mel, o nariz pequeno e bem desenhado, os cristalinos
olhos verdes cercados por longas pestanas, as incontáveis sardas que lhe
cobriam o rosto e o nascer do peito, o busto frondoso que se adivinhava debaixo
da camisa de dormir, Chamoa estava esplendorosamente bela, apesar do choro que já
a consumia, agarrada a Maria. Sou uma
tola, sou uma tola!
Mas nem
a sua visível aflição comoveu Afonso Henriques, que, numa berraria ressentida,
desatou a acusá-la. Como fui acreditar em vós? Mais uma vez, haveis-me traído! A
rapariga galega, as lágrimas a descerem-lhe pela cara, nem pensou em negar as evidências
e apenas implorou: desculpai-me, Afonso, meu amor. Ele interrompeu-a de pronto,
vociferando: não digais isso, víbora desvairada! Carregais uma criança de outro
homem no ventre! Haveis vindo a Guimarães para me enganar! Desesperada, Chamoa gemeu:
meu amado, perdoai-me! Foi Mem Tougues quem me desviou! Foi um erro, uma só
vez! Chamoa contou que o primo a visitara no Mosteiro de Vairão. Haviam ido passear
pelos campos e ela bebera muito vinho galego. A meio da tarde, perdera o tino, aproveitando
o primo para a possuir. Com a voz entrecortada por soluços, a minha cunhada jurou
que nunca desejara um filho do Tougues, aquela era uma terrível desgraça. Meu príncipe,
sois vós quem eu quero! Perdoai, por favor, esta minha grave falha! Com outro homem,
talvez a beleza dela, o convulsivo choro ou os seus dilacerados apelos tivessem
surtido efeito, mas Afonso Henriques era demasiado abrasivo para se conter». In Domingos
Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa,
2016, ISBN 978-989-741-461.
Cortesia
de CdasLetras/LeYa/JDACT