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Tiveram de fazer as visitas de cortesia e ir aos beija-mãos no meio de nuvens
de poeira, mas valeu a pena porque Rodrigo foi nomeado governador e
Capitão-General de Minas Gerais, Baía e Grão-Pará. A nova situação obrigou-os a
começarem a preparar as coisas para a viagem que estava marcada para daí a três
meses, mas dessa vez dividiram as tarefas. Maria José tratou da compra de panos
de linho, de algodão, de seda fina e também de chita da Índia, de cores
sóbrias, como lhe recomendou o marido ao mostrar-lhe uma bolsa com moedas pesadas
que o ministro lhe dera pessoalmente para que pudesse fazer face às despesas.
Uma parte do dinheiro foi enviada a um tio da morgada, para que resgatasse as
pratas que tinham ficado em casa do prestamista em Guimarães. Eram objectos que
estavam na família havia várias gerações e Rodrigo tinha-se comprometido a
recuperá-los assim que a sua situação económica o permitisse.
A
entrada da casa encheu-se de coisas que eram descarregadas continuamente e
Maria José teve de destinar um quarto espaçoso para irem pondo as caixas. O
rodopio aumentou quando começaram a aparecer as costureiras e os alfaiates e
invadiram os quartos de vestir de adultos e crianças, onde empilhavam peças dos
mais variados panos para prepararem um enxoval digno do cargo e do clima do
Brasil, oposto, em temperaturas e chuvas, ao do Minho. Tomaram medidas,
sugeriram modelos, fizeram provas de vestidos de corte e redondos para os
bailes, sapatos, luvas e enfeites de cabeça. Para as crianças, trajes de sair e
de ir à missa, mas sobretudo roupa leve para andar por casa. O futuro
governador declarou, com uma presunção nunca vista, que precisava de uma capa
de seda preta com bandas ricamente bordadas, de chapéu de penas brancas, casacos
curtos e abertos, por causa do calor, calções de tecido da Holanda em tom cru,
ceroulas e cabeleiras. O alfaiate mandou o seu aprendiz assentar essas vontades
todas, mantendo-se imperturbável, como se lhe estivessem a encomendar um par de
camisas, enquanto a sua mente registava os cifrões com uma precisão de
contabilista. Chegaram meias de seda de cor preta e pérola, e também branca
para uso diário, de todos os tamanhos porque as crianças iam crescer todos os meses
e não deviam encontrar-se nessas terras incivilizadas coisas tão
imprescindíveis e, principalmente, de acordo com os costumes do reino.
Enquanto
Maria José tratava desses assuntos de menor importância, Rodrigo dispôs-se a
organizar a botica portátil aconselhando-se com um dos médicos da corte, que
lhe fez uma lista dos trinta e tal remédios que convinha levar, e a ajuda do
boticário que, além de lhe fornecer os produtos, lhes juntou umas folhas
escritas pelo seu punho e letra com a enumeração das virtudes e a maneira de
utilizar as drogas. O que a princípio lhe pareceu uma tarefa ingrata, deixou de
o ser ao descobrir como se entretinha a mexer nos frascos, nos pós e nos
unguentos que foram ocupando o compartimento destinado a cada um numa caixa de
madeira nobre que mandara fazer. Perante o olhar atónito da mulher, que não
conseguia acreditar que os serões se tivessem transformado em aulas de
farmacologia, o governador descrevia os poderes curativos da água de canela,
boa para a digestão, expulsar flatos, fortificar a cabeça e o coração; do
bálsamo católico, que tanto servia para as feridas como para a dor de dentes;
do óleo de amêndoas doces, que se usava externamente para qualquer dor e
internamente nas deflexões, para adoçar a acrimónia da linfa, que ofendia
muito. Maria José ouvia tudo com uma atenção fingida, muito mais preocupada com
o avesso do ponto cruz, que a ajudava a suportar as intermináveis explicações
do marido.
Chegou
o dia em que a família e as duas criadas que os acompanhavam desde Guimarães
embarcaram num barco chamado Gigante para
o Brasil. Navegavam mais dois navios junto ao deles, porque nenhum capitão se
arriscaria a atravessar sozinho os mares, onde costumavam surgir corsários, temporais,
doenças ou outra situação inesperada que não seriam capazes de enfrentar sem
ajuda. Depois de navegar duas semanas, avistaram o porto de Santiago, em Cabo
Verde, que era a paragem obrigatória para se abastecerem de água doce e comprarem
alimentos frescos para armazenarem no porão dos barcos. A família aproveitou os
momentos livres para passear pela ilha: a nova condição de governador
obrigava-o a fazer visitas a altos funcionários da coroa, ávidos de notícias,
de cartas e de algum mexerico com que amenizar as longas tardes em que o mar lhes
trazia sempre o mesmo som das ondas a desfazerem-se na areia, num ramerrão que
lhes amolecia o corpo e os sentidos. Depois de se terem informado das novidades
do reino e de indagarem sobre a vida dos Meneses, o desejo íntimo dos brancos
da ilha era que acabasse a estada de pessoas ilustres para poderem novamente
fechar o círculo e voltar à rotina, cansados de tanta cerimónia, dos sapatos
que lhes apertavam os joanetes e do peso de uma roupa que não tinha sido
pensada para essas latitudes e que tinham de usar nessas ocasiões». In Cristina Norton, O Segredo da
Bastarda, 2002, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-23-1047-3.
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