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Arredores
de Colónia. 1430
«(…)
Desgrenhado, indefeso, débil e disforme, afastado da família por vontade própria,
o rapaz avistou, de uma escarpa, as muralhas de Colónia, a maior cidade das
redondezas. Encaminhou-se para lá, resignado, já acostumado ao silêncio que o
acompanharia pelo resto da vida. Esperava esconder entre os milhares de almas
que a habitavam o seu recém-adquirido aspecto. Pelo menos, entre o exército dos
aleijados que povoavam as ruas, ninguém repararia na sua horrível cicatriz. Contava
apenas treze anos, mas havia já dois meses que a infância o abandonara, amarrada
junto a ele naquele castanheiro. No primeiro dia da sua estada na cidade,
calhou dar com as pessoas que saíam da Igreja de São Miguel. Disseram-lhe que
ali distribuíam sopa quente a todo aquele que estivesse disposto a aceitá-la. O
sustento, conquanto escasso, era suficiente. E assim se foi aguentando. De
repente, numa tarde como outra qualquer, uma mão forte e inesperada pousou no
seu ombro, sobressaltando-o. Aquele que encontrou atrás si ao voltar-se não era
muito mais alto, ia vestido com uma capa longa e um capuz de cor preta e
manteve nele o olhar fixo do fundo das suas roupagens. Tinha a pele da mão pálida,
quase transparente, sulcada de veias violáceas. Perante aquela aparição,
tornaram os fantasmas do bosque que o haviam desfigurado, marginalizando-o para
toda a vida. Desta vez, no entanto, decidiu que venderia cara a sua pele.
Desatou a correr com todas as suas forças. O manto surrado que o cobria ficou
agarrado na mão do estranho.
Corria
sem olhar para trás. Pressentia na nuca o perigo, perseguindo-o por entre as
ruas estreitas. Depressa os passos se multiplicaram. Não era o eco, nem sequer
dos seus próprios passos, uma vez que ia descalço. Quando virou numa rua,
deparou-se-lhe um muro alto que lhe cortava a saída. Chegou ao fim e
encostou-se à parede como se assim pudesse fazê-la cair. Estava apanhado. Os
passos já não ressoavam fortes. Agora eram lentos e pausados. Cinco figuras
iguais à anterior apareceram no extremo oposto da calçada. Com os rostos envolvidos
pela sombra, aproximavam-se sem pressa. O rapaz tremia, à procura de um buraco
por onde fugir. Quando estavam próximos, lançaram-se sobre ele sem sequer perguntar.
Agarraram-lhe os braços e puxaram por eles com força, imobilizando-o no solo.
Nos olhos do jovem condensou-se o terror dos últimos tempos, das noites
envolvidas na dor e no frio, das pancadas do pai quando era mais pequeno, do
cheiro da sua própria carne queimada, dos seus pés pegajosos pelo sangue seco e
pela lama, o terror do duro despertar do inverno envolto em tremuras. Começou a
uivar como um animai que se sabe capturado e prestes a morrer.
Uma
sexta sombra aproximou-se e puxou para trás o capuz, enquanto todos os outros
se mantinham embuçados nas suas vestimentas. O rosto desta nova figura não era
pálido. As feições tinham um desenho suave e os olhos azuis exibiam uma limpidez
inabitual. Os gritos do menino foram-se esbatendo e o seu lugar foi ocupado por
um sussurro delicado, dirigido só a ele. Lembrou-se da mãe, lá na aldeia,
submetida a toda a brutalidade do pai, e umas palavras cálidas acompanharam a
recordação: há já algum tempo que te observamos. Não precisas de te preocupar.
Há muitos outros como tu. Em breve conhecê-los-ás. O rapaz continuava receoso,
apesar de ter deixado de sacudir os braços e as pernas. Respirava com agitação.
Sei o injusto que o mundo tem sido contigo e tens de saber que, a partir de
agora, estás a salvo. Ninguém voltará. jamais a ferir-te e deixarás de estar
só. Confia em mim.
As
promessas daquele homem entravam-lhe pelos ouvidos como uma aprazível brisa
primaveril, expandindo-se pelos nervos e prolongavam-se até à ponta dos dedos.
Havia muito tempo que ninguém era amável com ele, ou pelo menos era o que lhe
parecia. Afasta as tuas preocupações, pequeno. De agora em diante, Nikolas
Fischer protege-te. Aquela figura selou a promessa com um abraço. Então, as
obscuras personagens apartaram-se, deixando-o livre. O pequeno, envolto em
lágrimas e ainda trémulo, devolveu o abraço e decidiu confiar nesse homem.
Foi-se sossegando a pouco e pouco. Apegou-se ao desconhecido como um náufrago a
um escolho. Uma nova família acabava de o adoptar e, mesmo que fosse só por
isso, na sua desgraça estaria para sempre agradecido». In Eduardo Roca, A Oficina dos
Livros Proibidos, O Conhecimento pode Mudar o Mundo, 2011, tradução de Óscar
Mascarenhas, Marcador Editora, 2013, ISBN 978-989-754-015-8.
Cortesia
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