sexta-feira, 6 de maio de 2016

A Paixão segundo Constança H.. Maria Teresa Horta. «As crianças não interferiam na sua altivez. Pelo contrário, de outra maneira eram igualmente ávidas e sôfregas, saboreando todos os minutos daquele tempo ali passado com ela. Só voltavam para casa perto da noite»

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«(…) Quando chegaram as férias, Constança foi com os filhos para uma praia perto de uma pequena aldeia no Alentejo. Grandes areais vazios, arruivados. Dias inteiros ao sol, o sal a riscar-lhe de branco a pele enegrecida. Deitava-se à borda de água a sentir as pequenas ondas irem e virem sobre o seu corpo, os cabelos a flutuarem na espuma que depois deixava secar no começo dos ombros. Às crianças davam gritos de satisfação enquanto mergulhavam ou corriam atrás umas das outras. Comiam de vez em quando os frutos e o pão que levavam no cesto de verga que ela comprzira na aldeia. Constança só bebia água, porque o estômago se recusava a receber alimentos enquanto estava na praia. Era como se tivesse deixado de existir: não tinha mais pensamentos, as ideias, os gostos apagavam-se. Nadava, durante muito tempo, para longe da margem e ficava a boiar olhando a luz irisada e intensa que descia sobre o mar, acendendo-o. Era tudo.
Voltava a nadar até onde os filhos brincavam nas ondas e misturava-se com eles por momentos, logo correndo para a areia escaldante, o corpo frio, ainda frio, mas a ganhar já o calor intenso que o secara num sopro. Deitava-se depressa a tentar gozar o prazer que lhe trazia sempre o sol a absorver as pequenas gotas na pele, durante apenas uns breves segundos, que saboreava gulosa e sôfrega. As crianças não interferiam na sua altivez. Pelo contrário, de outra maneira eram igualmente ávidas e sôfregas, saboreando todos os minutos daquele tempo ali passado com ela. Só voltavam para casa perto da noite. Acendiam então as velas que havia e comiam à mesa da cozinha, à volta do tampo de madeira ve1ha, lascada, marcada, cheia de cicatrizes e falhas. Manchas. Constança nem sempre cozinhava, as crianças sabiam fazer ovos e fritar carne nas frigideiras de ferro, velhas e negras; frigideiras de ferro pesado que haviam descoberto no dia em que chegaram, arrumadas em armários empenados, de portas à rangerem nos pequenos gonzos enferrujados. Cortavam grandes nacos de pão com as facas rombas e davam-nos à mãe, depois de os molharem nas gorduras que chiavam no lume do fogão aceso com as achas que haviam apanhado logo de manhã enquanto ela ainda dormia. Depois tomavam duche com a mangueira que havia no pequeno pátio à frente de casa, debaixo de uma árvore ressequida e gasta.
Bebiam leite pelas canecas rachadas, esboroadas nas bordas, e ela às vezes dizia tenham cuidado, para não se cortarem. Constança preferia os restos do café amargo que ficara da véspera na cafeteira sem tampa, que cobria com um pires por causa das moscas e da areia que persistentemente parecia tentar corroer tudo o que estivesse na casa, desde os seus alicerces frágeis, enterrados nas dunas, carcomidos pela humidade salgada. Sentava-se à noite nos degraus de pedra roída pelos passos dos anos ou na cadeira de verga debaixo da árvore, a fumar cigarro após cigarro antes de ir para a cama. Sem sono. Tentando apagar tudo da memória. Estava ali para esquecer. Nunca deixando, no entanto, de sentir aquela dor dilacerante no peito. Aquele ódio como uma febre no sangue. Era a traição que a mordia no sítio do coração, os pulsos tensos, a garganta apertada, a boca e a língua secas. Como um beijo envenenado». In Maria Teresa Horta, A Paixão segundo Constança H., 1994, Bertrand Editora, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-252-242-7.

Cortesia de BertrandE/JDACT