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Quando chegaram as férias, Constança foi com os filhos para uma praia perto de
uma pequena aldeia no Alentejo. Grandes areais vazios, arruivados. Dias
inteiros ao sol, o sal a riscar-lhe de branco a pele enegrecida. Deitava-se à borda
de água a sentir as pequenas ondas irem e virem sobre o seu corpo, os cabelos a
flutuarem na espuma que depois deixava secar no começo dos ombros. Às crianças davam
gritos de satisfação enquanto mergulhavam ou corriam atrás umas das outras. Comiam
de vez em quando os frutos e o pão que levavam no cesto de verga que ela comprzira
na aldeia. Constança só bebia água, porque o estômago se recusava a receber alimentos
enquanto estava na praia. Era como se tivesse deixado de existir: não tinha mais
pensamentos, as ideias, os gostos apagavam-se. Nadava, durante muito tempo, para
longe da margem e ficava a boiar olhando a luz irisada e intensa que descia sobre
o mar, acendendo-o. Era tudo.
Voltava
a nadar até onde os filhos brincavam nas ondas e misturava-se com eles por momentos,
logo correndo para a areia escaldante, o corpo frio, ainda frio, mas a ganhar já
o calor intenso que o secara num sopro. Deitava-se depressa a tentar gozar o prazer
que lhe trazia sempre o sol a absorver as pequenas gotas na pele, durante apenas
uns breves segundos, que saboreava gulosa e sôfrega. As crianças não interferiam
na sua altivez. Pelo contrário, de outra maneira eram igualmente ávidas e sôfregas,
saboreando todos os minutos daquele tempo ali passado com ela. Só voltavam para
casa perto da noite. Acendiam então as velas que havia e comiam à mesa da cozinha,
à volta do tampo de madeira ve1ha, lascada, marcada, cheia de cicatrizes e
falhas. Manchas. Constança nem sempre cozinhava, as crianças sabiam fazer ovos e
fritar carne nas frigideiras de ferro, velhas e negras; frigideiras de ferro pesado
que haviam descoberto no dia em que chegaram, arrumadas em armários empenados,
de portas à rangerem nos pequenos gonzos enferrujados. Cortavam grandes nacos de
pão com as facas rombas e davam-nos à mãe, depois de os molharem nas gorduras
que chiavam no lume do fogão aceso com as achas que haviam apanhado logo de manhã
enquanto ela ainda dormia. Depois tomavam duche com a mangueira que havia no pequeno
pátio à frente de casa, debaixo de uma árvore ressequida e gasta.
Bebiam
leite pelas canecas rachadas, esboroadas nas bordas, e ela às vezes dizia tenham
cuidado, para não se cortarem. Constança preferia os restos do café amargo que
ficara da véspera na cafeteira sem tampa, que cobria com um pires por causa das
moscas e da areia que persistentemente parecia tentar corroer tudo o que estivesse
na casa, desde os seus alicerces frágeis, enterrados nas dunas, carcomidos pela
humidade salgada. Sentava-se à noite nos degraus de pedra roída pelos passos dos
anos ou na cadeira de verga debaixo da árvore, a fumar cigarro após cigarro antes
de ir para a cama. Sem sono. Tentando apagar tudo da memória. Estava ali para esquecer.
Nunca deixando, no entanto, de sentir aquela dor dilacerante no peito. Aquele ódio
como uma febre no sangue. Era a traição que a mordia no sítio do coração, os pulsos
tensos, a garganta apertada, a boca e a língua secas. Como um beijo envenenado».
In
Maria Teresa Horta, A Paixão segundo Constança H., 1994, Bertrand Editora,
Lisboa, 2010, ISBN 978-972-252-242-7.
Cortesia
de BertrandE/JDACT