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«Per
Déu, germans, ajudeu… ajudeu-me a treure'l d'aqui...
Quem
gritava era o ferreiro de Almenar, que conhecia bem o homem quase enforcado na praça
de San Mateo, às primeiras horas da manhã daquele dia treze, do primeiro mês do
ano. Não devia ser idoso. Na cabeça rapada despontavam cabelos ainda negros como
as barbas longas, e os ombros bem afirmados seguravam o capote, por intenção alisado.
Os populares iam acorrendo, angustiados com a imagem, com o rosário de
lamentações que o ferreiro ia desfiando. É o visitador do castelo de Monzón, que
ainda ontem corria os lugares a lembrar o casamento da infanta Isabel... Quem terá
feito isto com ele, Nossa Senhora de Puig? E não parava de invocar os santos conhecidos,
a segurar as pernas balouçantes do infeliz. Quando alguém, equilibrado na base
de uma talha, conseguia cortar a corda, o corpo escapava-lhe das mãos para cair
pesadamente no chão. Nessa altura já os curiosos confirmavam a identidade da vítima,
que o ferreiro fazia por reanimar com palmadinhas no rosto. Era Ramón Barbaré, de
uma família descendente de cátaros de Carcassonne, acolhida por gente do Templo,
primeiro do lado de lá dos Pirenéus, depois em diferentes paragens do reino da Catalunha.
E desatavam os populares a bater palmas quando ele ganhava cores, à medida que abria
os olhos, sorrindo de gratidão pela pronta intervenção do ferreiro. Aquilo passava-se
há uma lua. Depois do pesadelo das duas primeiras noites, eu acabava por esquecer.
Até que esta madrugada ouvia, na casa da minha companheira viúva, as pancadas fortes
a castigarem repetidamente a porta de carvalho. Levantava-me aturdido, mal
enrolando uma saca de estopa à volta das partes nuas. Ainda amedrontado
entreabria as portadas da janela, ao rés-do-chão, para receber ali mesmo, das mãos
do encapuzado, a mensagem anunciada por uma voz rouca, a sair como de um túnel da
massa escura sem rosto definido.
É para
já... teu tio tem de levá-la ao destino ainda hoje. E dito isto desaparecia em cima
de um cavalo tordilho, para logo se confundir com a linha do horizonte, já riscada
por uma brancura leitosa. Morto por desenrolar o velino para ver o que continha,
assim fazia eu, fixando os poucos símbolos com o tronco inclinado para fora das
portadas, para colher a claridade. Ao cimo, do lado direito da folha, um sol incidia
sobre o desenho de um burgo, sobressaindo logo abaixo os números II e III unidos
por linha recta. A meio nada mais que um tornez de prata, uma moeda recente cunhada
na corte de Portugal, igual a cinquenta dinheiros. Já tivera algumas na mão. Do
lado oculto, fixado com grude à folha, devia estar o escudo dos templários. À vista,
quase na orla do círculo, a face de cinco escudetes exibia bem legíveis os dizeres
adictorium nostrum in nomine domine que fecit celum et terram. Não era tudo.
Ao fundo do rolo via-se a marca do selo da ordem do Templo, tão chegada à margem
da folha que pensei logo no jeito de carimbar de meu tio Ángel, grão-prior da casa
de Monzón. Mas ainda mais estranho era o pentagrama que encimava a marca, com prolongamentos
finos nas pontas e linhas mais definidas a meio. Um desenho? Quase certo. Do feixe
de linhas cruzadas os meus olhos retiravam um triângulo de ângulo recto, com
meia lua agarrada ao centro da parede vertical, de modo a formar um P.
Voltava
então a enrolar o velino com cuidado, para não descolar a moeda, não fosse alguém
perceber que tinha violado a mensagem. E antes que me esquecesse dele na hora de
partir, metia-o no canudo de couro, depois o canudo na algibeira interior da túnica
que havia de vestir. A seguir comia as sopas de pão com vinho, emborcava as borras
do líquido no fundo da malga, enfiava as vestes sobre o corpo suado. E saindo
para a madrugada, em silêncio para não acordar a viúva, corria o ferrolho do curral
para aparelhar o burro inquieto com o som dos meus passos.
Meu tio
Juan de Cardeña y Fole é um goliardo de trinta anos, avesso a obrigações, à
organização do tempo. Venho encontrá-lo nos anexos da casa de Penedès, numa cabana
de madeira a quatro léguas a ocidente da casa da viúva. Meto o nariz numa
ranhura das ripas. Ali deitado nas palhas da choça atulhada como uma colmeia,
mergulha na quietude de um mundo de fantasia. Tem o rosto sereno, adoçado por raios
do puríssimo alvorecer, filtrados pelos intervalos das telhas». In
Maria Helena Ventura, Onde Vais Isabel, Saída de Emergência, 2008, ISBN
978-989-637-034-3.
Cortesia
de SdeEmergência/JDACT