quinta-feira, 12 de maio de 2016

Dominus. Tom Fox. «Quem és tu?, perguntou na sua voz trémula, mas sonora e familiar. O homem olhou tranquilamente nos olhos do pontífice. Enquanto o povo havia de lembrar o mistério do silêncio que encheu o vasto espaço durante este longo olhar entrecruzado»


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Basílica de São Pedro. Cidade do Vaticano: domingo, manhã
«(…) Quando o estranho se aproximou da periferia, os guardas eram o último corpo antes do baldaquino e dos clérigos que se encontravam por baixo dele. Por tradição e honra, bem como pelo juramento que cada um tinha feito aquando da contratação no Cortile di San Damaso, não permitiriam que ninguém passasse a linha que constituem. A santidade suscitava reverência, mas também ódio, e durante séculos as fileiras da Guarda Suíça tinham garantido que, pelo menos em termos práticos, o ódio não vencesse o amor. Contudo, o estranho continuava a aproximar-se, tornando-se claro que o caminho que tencionava seguir não terminava na extremidade do cordão de segurança. Os dois guardas mais próximos da nave central retesaram-se, as suas posições bloqueando-lhe o trajecto, as mãos apertando com segurança as alabardas cerimoniais. Por trás do homem que se aproximava, era como se toda a basílica tivesse ficado em silêncio e suspensa. O espaço estava electrizado com atenção. Milhares de olhos fixavam-se neste homem, totalmente fascinados.
O estranho desacelerou o passo, parecendo flagrantemente ainda mais deslocado nas suas calças de ganga ao abeirar-se dos antigos uniformes erradamente atribuídos a um modelo feito por Miguel Ângelo. Parou a apenas alguns metros dos guardas. Não disse nada. os seus olhos fixados apenas no papa, por trás daqueles homens, alguns degraus acima. Firmes como esteios, os guardas ficaram rígidos, com a devoção e o treino incansável a chamá-los ao seu dever sagrado. E foi então, quando o estranho parou à frente deles, que se ajoelharam. Todo o esquadrão de soldados de elite, as forças militares efectivas do Vaticano, se ajoelhou em uníssono quase perfeito. Os dois guardas mais próximos do estranho desviaram-se para o lado, em atitude deferente e respeitadora, permitindo-lhe a livre passagem. Ouviram-se suspiros abafados vindos da multidão quando o estranho retomou o seu avanço, caminhando suavemente em volta da cripta de São Pedro. Alguns passos depois, começou a sua subida para o altar-mor. O corpulento maestro do coro vestido de vermelho olhou por cima do ombro, em choque, virando em seguida as costas ao grupo que dirigia. Os braços ainda estavam suspensos na sua pose habitual quando por trás dele o coro hesitou e depois emudeceu.
A súbita ausência de som na basílica era esmagadora. Os passos do homem ouviam-se agora nitidamente, ecoando pelo espaço hipnotizado, enquanto subia os degraus finais. Ficou finalmente olhos nos olhos com o Santo padre, que estava do outro lado do altar. O corpo do papa estava dobrado para a sua direita, com os seus assistentes a agarrarem-lhe a parte superior dos braços com firmeza para o apoiarem. Ele manteve-se estático no seu lugar, a ponta dos dedos ainda tocando no cálice cintilante, e os olhos presos nos do estranho. Quem és tu?, perguntou na sua voz trémula, mas sonora e familiar. O homem olhou tranquilamente nos olhos do pontífice. Enquanto o povo havia de lembrar o mistério do silêncio que encheu o vasto espaço durante este longo olhar entrecruzado, o papa havia de recordar que tinha sido como se estivesse a olhar para a eternidade, com o seu coração cheio da mesma sensação de deslumbramento e majestade que tinha antes experienciado ao observar as ondulantes ondas do mar, enquanto contemplava a vastidão da glória de Deus. Depois, com voz suave, estendendo as duas mãos viradas para cima, o estranho falou finalmente. Não me conheces, Pedro?
A basílica encheu-se de expressões sonoras de espanto. A quietude deu lugar a uma onda de sibilante tensão quando a resposta do homem foi sussurrada pelas filas dos fiéis. Os visitantes ocasionais que povoavam a multidão esforçavam-se por compreender o que significava, mas o significado das palavras só era claro para os homens e mulheres de fé. Claro e explosivo. Pedro era o nome do primeiro sumo pontífice, o homem que tinha negado Cristo três vezes. Estas eram palavras que o Salvador diria aos seus. Os flashes das máquinas fotográficas começaram a relampejar às centenas. No entanto, o papa mantinha o seu olhar fixo nas mãos estendidas do estranho. Os olhos pontifícios encheram-se de lágrimas inesperadas. Meu servo fiel, disse o estranho um momento mais tarde, com uma voz intensa e estranhamente apaziguadora. Pousou uma das mãos no ombro trémulo do pontífice. O assistente que segurava o braço direito do pontífice agarrou-o com mais força, mas o estranho manteve o seu olhar suave no Santo Padre, sem qualquer vestígio de ameaça. Não tenhas medo. Sou eu.
Os olhos do Papa eram como vidro, a sua respiração fraca. À distância, as últimas palavras do estranho tinham sido ouvidas e o seu conteúdo ainda mais directo incendiou os fiéis, que tiravam fotografias com as suas máquinas fotográficas, filmavam a cena com os seus telefones móveis, dezenas deles caindo de joelhos, a rezar. As dezenas tornaram-se uma centena, e uma centena tornou-se duas. Mas o pontífice olhava fixamente na cara do estranho. Todo o seu corpo tremia. E então deu-se o milagre». In Tom Fox, Dominus, 2015, tradução de Ângelo Santana, Topseller, 20/20 Editora, ISBN 978-989-883-913-8.

Cortesia de Topseller/20/20 Editora/JDACT