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Basílica
de São Pedro. Cidade do Vaticano: domingo, manhã
«(…)
Quando o estranho se aproximou da periferia, os guardas eram o último corpo
antes do baldaquino e dos clérigos que se encontravam por baixo dele. Por tradição
e honra, bem como pelo juramento que cada um tinha feito aquando da contratação
no Cortile di San Damaso, não permitiriam que ninguém passasse a linha que
constituem. A santidade suscitava reverência, mas também ódio, e durante
séculos as fileiras da Guarda Suíça tinham garantido que, pelo menos em termos
práticos, o ódio não vencesse o amor. Contudo, o estranho continuava a
aproximar-se, tornando-se claro que o caminho que tencionava seguir não
terminava na extremidade do cordão de segurança. Os dois guardas mais próximos
da nave central retesaram-se, as suas posições bloqueando-lhe o trajecto, as mãos
apertando com segurança as alabardas cerimoniais. Por trás do homem que se
aproximava, era como se toda a basílica tivesse ficado em silêncio e suspensa. O
espaço estava electrizado com atenção. Milhares de olhos fixavam-se neste
homem, totalmente fascinados.
O estranho
desacelerou o passo, parecendo flagrantemente ainda mais deslocado nas suas
calças de ganga ao abeirar-se dos antigos uniformes erradamente atribuídos a um
modelo feito por Miguel Ângelo. Parou a apenas alguns metros dos guardas. Não
disse nada. os seus olhos fixados apenas no papa, por trás daqueles homens,
alguns degraus acima. Firmes como esteios, os guardas ficaram rígidos, com a
devoção e o treino incansável a chamá-los ao seu dever sagrado. E foi então,
quando o estranho parou à frente deles, que se ajoelharam. Todo o esquadrão de
soldados de elite, as forças militares efectivas do Vaticano, se ajoelhou em
uníssono quase perfeito. Os dois guardas mais próximos do estranho desviaram-se
para o lado, em atitude deferente e respeitadora, permitindo-lhe a livre
passagem. Ouviram-se suspiros abafados vindos da multidão quando o estranho retomou
o seu avanço, caminhando suavemente em volta da cripta de São Pedro. Alguns
passos depois, começou a sua subida para o altar-mor. O corpulento maestro do
coro vestido de vermelho olhou por cima do ombro, em choque, virando em seguida
as costas ao grupo que dirigia. Os braços ainda estavam suspensos na sua pose
habitual quando por trás dele o coro hesitou e depois emudeceu.
A
súbita ausência de som na basílica era esmagadora. Os passos do homem ouviam-se
agora nitidamente, ecoando pelo espaço hipnotizado, enquanto subia os degraus finais.
Ficou finalmente olhos nos olhos com o Santo padre, que estava do outro lado do
altar. O corpo do papa estava dobrado para a sua direita, com os seus
assistentes a agarrarem-lhe a parte superior dos braços com firmeza para o
apoiarem. Ele manteve-se estático no seu lugar, a ponta dos dedos ainda tocando
no cálice cintilante, e os olhos presos nos do estranho. Quem és tu?, perguntou
na sua voz trémula, mas sonora e familiar. O homem olhou tranquilamente nos
olhos do pontífice. Enquanto o povo havia de lembrar o mistério do silêncio que
encheu o vasto espaço durante este longo olhar entrecruzado, o papa havia de recordar
que tinha sido como se estivesse a olhar para a eternidade, com o seu coração cheio
da mesma sensação de deslumbramento e majestade que tinha antes experienciado
ao observar as ondulantes ondas do mar, enquanto contemplava a vastidão da glória
de Deus. Depois, com voz suave, estendendo as duas mãos viradas para cima, o estranho
falou finalmente. Não me conheces, Pedro?
A basílica
encheu-se de expressões sonoras de espanto. A quietude deu lugar a uma onda de sibilante
tensão quando a resposta do homem foi sussurrada pelas filas dos fiéis. Os
visitantes ocasionais que povoavam a multidão esforçavam-se por compreender o que
significava, mas o significado das palavras só era claro para os homens e mulheres
de fé. Claro e explosivo. Pedro era o nome do primeiro sumo pontífice, o homem que
tinha negado Cristo três vezes. Estas eram palavras que o Salvador diria aos
seus. Os flashes das máquinas fotográficas começaram a relampejar às centenas. No
entanto, o papa mantinha o seu olhar fixo nas mãos estendidas do estranho. Os
olhos pontifícios encheram-se de lágrimas inesperadas. Meu servo fiel, disse o estranho
um momento mais tarde, com uma voz intensa e estranhamente apaziguadora. Pousou
uma das mãos no ombro trémulo do pontífice. O assistente que segurava o braço direito
do pontífice agarrou-o com mais força, mas o estranho manteve o seu olhar suave
no Santo Padre, sem qualquer vestígio de ameaça. Não tenhas medo. Sou eu.
Os olhos
do Papa eram como vidro, a sua respiração fraca. À distância, as últimas palavras
do estranho tinham sido ouvidas e o seu conteúdo ainda mais directo incendiou os
fiéis, que tiravam fotografias com as suas máquinas fotográficas, filmavam a cena
com os seus telefones móveis, dezenas deles caindo de joelhos, a rezar. As dezenas
tornaram-se uma centena, e uma centena tornou-se duas. Mas o pontífice olhava fixamente
na cara do estranho. Todo o seu corpo tremia. E então deu-se o milagre». In Tom
Fox, Dominus, 2015, tradução de Ângelo Santana, Topseller, 20/20 Editora, ISBN
978-989-883-913-8.
Cortesia
de Topseller/20/20 Editora/JDACT