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A
profecia da Normanda. 1130-1131
«O dia
acabara de nascer e na lareira do quarto do Castelo de Guimarães crepitavam ainda
as brasas quando Chamoa Gomes acordou, ligeiramente incomodada. Uma sensação de
alarme interior agitou-a, mas rapidamente a afastou. O corpo quente de Afonso Henriques
encontrava-se à sua esquerda, tudo estava bem. Emocionada, Chamoa aninhou-se no
seu amado, que ainda dormia. Haviam sido sete noites fogosas desde que chegara do
Mosteiro de Vairão, donde fugira a cavalo, mas finalmente estavam juntos. Amo-o tanto... Fechou os olhos e tentou adormecer
de novo. Não se ouvia vivalma na torre de menagem, a não ser lá em baixo, nas cozinhas
do castelo, onde a padeira já cirandava junto ao forno. O cheiro do pão fresco chegava-lhe
às narinas, mas não lhe deu fome, pelo contrário. Enjoada, Chamoa revirou-se na
cama, tentando não acordar o príncipe de Portugal, enquanto o olhava demoradamente.
Tal como muitos outros portucalenses, ele adoptara os costumes de Bizâncio, apresentava
uma barba e um cabelo longos, que quase o faziam bonito, e ela suspirou.
O meu gigante... Tinham sofrido
tanto... As permanentes desavenças só há uma semana se haviam extinguido. Chamoa
deixara finalmente o mosteiro onde se fechara mais de um ano, Afonso Henriques perdoara-lhe
as falhas e o reencontro dera-se em Guimarães, naquela cama onde celebraram por
fim a consumação de um amor sempre tórrido, mas tanto tempo massacrado pelas determinações
do orgulho e da política. Só o perdão genuíno e a crença num futuro conjunto os
podia unir. Ainda angustiada com o estranho pressentimento de que o podia perder
de novo, abraçou-o mais, abraçou-o tanto que ele acordou, estremunhado. O príncipe
sorriu e ergueu o braço, passando-o sobre a sua cabeça, pousando-o por fim nas suas
costas. Chamoa entrelaçou as suas pernas nas dele, entusiasmada. Queria-o sempre
mais. Amavam-se duas, três vezes por dia, para recuperar o tempo perdido. Vinde para dentro de mim...
Em
Guimarães, a minha mulher, Maria Gomes, irmã de Chamoa, fora a única a desconfiar
daquele fogoso arrebatamento. Logo no dia em que a mana chegou do mosteiro, agradei-me
por existir finalmente harmonia entre aqueles dois, mas Maria comentou: Lourenço
Viegas, com a Chamoa nunca se sabe! Deus e o Diabo dançam-lhe na alma, de braço
dado. Encolhi os ombros ao mau agoiro e secretamente julguei que minha mulher invejava
a irmã, que sempre fora mais bonita. Desde a infância que Chamoa sonhava ser
princesa, ou mesmo rainha, e admiti que Maria não lidava bem com a possibilidade
de esse desejo finalmente se concretizar. Era a única relutante, pois, tal como
eu, também meu pai, Egas Moniz, e meu tio, Ermígio Moniz, apostavam que aquela união,
depois de tanta desavença, seria agora sólida e inquebrável. O nosso desejo comum,
embora genuíno, não era inocente, nem desalinhado com o interesse geral, pois
aquele namoro era proveitoso para os portucalenses. Chamoa era filha de Gomes
Nunes, senhor de Toronho, unindo-se à minha cunhada o príncipe de Portugal passava
a dominar as terras de Tui, permitindo que o Condado Portucalense crescesse a norte
do rio Minho.
Além
disso, o facto de Chamoa ser uma Trava, pois era também filha de Elvira Peres Trava
e sobrinha de Fernão Peres, poderia no futuro possibilitar a paz entre Afonso
Henriques e aquela poderosa família galega. Casado com Chamoa, o príncipe
uniria o Condado Portucalense à Baixa Galiza, concretizando o velho sonho de seu
pai, o conde Henrique: um reino único, a norte e a su1 do rio Minho. Durante
aqueles sete bonitos e solarengos dias de outono, em Guimarães o ambiente geral
era, pois, de alegria e esperança. O meu melhor amigo e Chamoa permaneciam
horas fechados no quarto e só se juntavam a nós a meio do dia, num repasto à volta
da mesa, apreciando as apetitosas comidas que a bela Teresa de Celanova, segunda
esposa de meu pai, confecionava nas cozinhas do castelo. Foram as viandas e as tigeladas
de leite as primeiras culpadas dos vómitos de Chamoa naquela manhã. A minha
Maria foi de súbito chamada ao quarto, pois a irmã começara a despejar o estômago,
decerto enfastiada com os excessos da véspera. Notei um minúsculo franzir de testa
na minha esposa, mas, contagiado pela boa disposição que reinava naquela
alcáçova há sete dias, não me preocupei, nem quando Maria regressou do quarto
do príncipe e ordenou a uma das criadas que fosse depressa chamar o curandeiro.
Meu pai, sentado ao lado de Afonso Henriques, resmungou: a Teresa junta ovos a mais...»
In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das
Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.
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