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Janeiro de 1985
«Ouviu novamente a batida na porta, hesitante
e débil. No casulo do seu leito, afastou o edredão e enrolou um xaile nos ombros
para se proteger do frio do inverno. Sozinha em casa, Margaret começou a descer
as escadas com cautela. Sustendo a respiração, procurou confirmar que o barulho
na porta da frente não era apenas mais uma alucinação auditiva para lhe perturbar
o sono duramente conquistado. No quarto degrau antes de chegar ao fundo, espreitou
através do postigo, mas apenas descortinou uma escuridão ameaçadora e a luz azul
do luar e das estrelas reflectida na neve recente. Murmurou uma oração para si
mesma: não me faças mal... Margaret premiu as palmas das mãos contra a madeira de
carvalho para deduzir a presença de alguém do outro lado da porta, sem ver, sem
ser vista e, confiante, destrancou a porta e abriu-a. Na soleira, encontrava-se
uma rapariguinha trémula, que não tinha mais de nove anos, com uma mala de viagem
desconjuntada encostada às pernas. Entre a bainha do casaco e o cimo das meias que
lhe chegavam ao joelho, a pele nua brilhava em tons de salmão rosado. Não tinha
gorro e, mesmo sob a luz débil, via-se-lhe, através do fino cabelo loiro, o vermelho-vivo
da parte de cima das orelhas. Um arrepio de frio visível percorreu-lhe a espinha,
os joelhos ossudos bateram um no outro e as ancas estreitas contorceram-se
quando o arrepio culminou em convulsões nos ombros e num bater de dentes involuntário.
Abriu e fechou os dedos para manter o sangue a circular. Por baixo do casaco de
escocês gasto, mais apropriado para o princípio do outono, a rapariga não
parecia mais que um esqueleto, toda ela linhas e ângulos agudos. O inverno soprava
através dela. Coitadinha, entra. Há quanto tempo estás aí ao frio? Margaret Quinn observou a visita, deu um passo
para o alpendre, levou a miniatura de mala para dentro e trancou a porta atrás
de si. O que lhe parecera irreal através da porta aberta confrontava-a agora na
segurança do lar. A rapariga ficou no vestíbulo, a degelar e abalada por tremores.
Presa ao tecido do casaco, uma etiqueta de papel rasgada, com três letras
escritas numa caligrafia irregular: N-O-R. É o teu nome, filha? Falta qualquer coisa.
Não é assim que se escreve Norah. Falta um A e um H. É esse o teu nome? Norah? A
criança não respondeu, mas o calor começara a infiltrar-se nela, aliviando a rigidez
gelada da sua aparência. Quando reparou que a mulher a observava, sorriu com
finos lábios azuis. Margaret apressou-se a acender as luzes e atravessou a sala
de jantar até à cozinha, e a rapariga seguiu-a como um cachorrinho enquanto ela
riscava um fosforo e acendia o fogão a lenha e, com um graveto, fechava a porta
de ferro. Vem aquecer-te. Regressaram-lhe velhos hábitos e instintos
adormecidos. Aqueceu leite num tacho e barrou com manteiga bolachas de água e sal.
Empoleirada numa cadeira junto do fogão, a rapariga desabotoou o casaco e despiu
as mangas. Quando os óculos grossos ficaram embaciados, tirou-os, limpou as lentes
à bainha do vestido e voltou a colocá-los sem demora no nariz. O sangue voltou-lhe
às faces e fê-las resplandecer. Os olhos brilharam-lhe e, sem uma palavra,
pegou na caneca e engoliu metade do conteúdo. Tens de desculpar essas bolachas com
manteiga, mas não tenho mais nada. Não aparecem aqui muitas crianças. As bolachas
desapareceram. A tigela vazia voltou a ser cheia. A velha casa gemia e tiquetaqueava,
acordando do sono. Por trás dos olhos da menina, sentada em total imobilidade ao
lado de Margaret à mesa da cozinha, brilhou uma luz. As duas criaturas
examinaram-se uma à outra no calor que as envolvia. De onde vens? Como chegaste
aqui? O casaco escorregou dos ombros da
rapariga, revelando um pulôver azul e uma blusa amarela, e meias brancas até ao
joelho, desbotadas por uma centena de lavagens. Dois ganchos desirmanados
seguravam-lhe o cabelo irregular e um fiapo de geada semelhante a giz brilhava-lhe
por cima dos lábios gretados. Considerando a resposta, desapareceu num vazio e,
quando fechou os olhos, pequenas veias rendilharam-lhe as pálpebras pálidas. Tomando
consciência do tardio da hora, Margaret sentiu de repente o cansaço da idade, o
peso dos braços e das pernas, a dor nas articulações. Foi tomada de uma disposição
sombria. Sabes falar, miúda? Estava gelada, respondeu ela, com voz fleumática. Gelada
como a ponta de um pingente de gelo. Uma alma velha num corpo de criança, uma daquelas
sobrenaturalmente maduras. Com uma golada rápida, a criança acabou o leite,
pigarreou e o tom da sua voz aliviou uma oitava. Não comi nada em toda a noite,
por isso agradeço-lhe, senhora Quinn. Margaret perguntou-se como sabia o seu nome,
depois lembrou-se que o devia ter lido na caixa do correio. A rapariguinha
bocejou, revelando uma boca irregular de molares de leite e buracos, as pontas serradas
dos dentes adultos furando as gengivas em ângulos estranhos. Deves estar
cansada, minha menina. Norah, com A-H no fim. Parece que não durmo há um milhar
de anos. Ambos os ponteiros do relógio ultrapassaram a meia-noite. Há uma cama a
mais lá em cima. Mas primeiro telefonamos à tua mãe. Não tenho mãe. Nem pai. Ninguém,
em todo este mundo. Sou órfã, senhora Quinn. Uma lasca de dor golpeou-lhe o
coração. Tenho tanta pena. Há quanto tempo estás sozinha? Sempre estive. Desde o
princípio. Nunca conheci os meus pais. E vens de onde? Devíamos telefonar à polícia,
para ver se alguém comunicou o desaparecimento de uma criança». In
Keith Donohue, E se fosse um Anjo, 2009, tradução de Fernanda Semedo, Saída de
Emergência, 2012, ISBN 978-989-637-443-3.
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