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«No
breve
espaço dos últimos quinze dias a humanidade pagou á morte um pesado tributo.
Escrevemos no meio de túmulos gloriosos e amados. Deixaram de existir, em França,
Raspail e Courbet; na Itália Victor Manuel, no Brazil José de Alencar; em Portugal,
Augusto Soromenho. Raspail, entre todos esses o maior, deixa na terra um
immenso vacuo imprehenchivel. Desappareceu com elle uma das mais poderosas
forças sociaes do mundo moderno, a porção mais fecunda e mais gloriosa da
grande alma do povo. Ninguem como elle amou a humanidade e ninguem empregou tão
vastas e tão profundas faculdades no culto do seu amor. Foi o maior
contribuinte dos descobrimentos scientificos d'este seculo. Creou a chimica
organica e póde-se dizer que creou tambem a physiologia botanica e a anathomia
microscopica. Fundou a hygiene em bases novas, não como uma dependencia da
medicina, mas como um desdobramento da sciencia social. Foi elle o que definiu
pela primeira vez em fundamentos positivos o dogma do suffragio universal. Foi
ainda elle o primeiro que proclamou no Hotel de Ville a Republica de 48. Este
eximio cultor, acrescentador e reformador do todas as sciencias physicas, de
todas as sciencias biologicas e de todas as sciencias socilaes, astronomo,
chimico, physiologista, medico, archeologo, economista, era alem d'isso um
delicado e valente escriptor. O seu genio profundo actuou efficazmente no
desenvolvimento do estudo dos astros, das plantas, dos animaes, do homem, e bem
assim na reforma do todas as instituições politicas e sociaes, na reforma
administrativa, na reforma judiciaria, na reforma penitenciaria e na reforma
penal. O seu altivo caracter de soberano plebeu tornou-o sempre irreconciliavel
com todo o favor, com lodo o auxilio, com toda a collaboração official. Recusou
todas as distinções honorificas, todos os cargos publicos, todos os diplomas
scientificos ou litterarios. As suas observações astronomicas, os seus trabalhos
de chimica, as suas applicações do microscopio ao estudo das celulas e dos tecidos
fizerarn-se n'uma agua furtada humilde dos bairros baratos de Paris com os instrumentos
mais rudimentares, no isolamento austero da independencia o do sacrificio.
Esse
intrepido filho do povo tinha a fibra de Galileu, de Giordano Bruno e do
Bernardo Palissy. A academia franceza, commovida com uma tão exemplar grandeza
d'alma, resolveu conferir-lhe em 1833 o premio Montyon, declarando-lhe pela
boca do grande Geoffroy-Saint-Hilaire que ella o considerava como sendo o homem
que mais serviços tinha prestado á sciencia e á humanidade. Guizot, então
ministro da instrução publica, interveio na resolução da academia prohibindo
que o premio da virtude cahisse no cofre da rebelião. O chefe do partido
conservador francez não podia esquecer que fôra esse mesmo sabio obscuro o despremiado
o que no anno anterior, em plena Restauração, ousara fulminar a votação da
lista civil com a phrase memoravel paga por elle com 500 francos de multa e 15
mezes de cadeia: deveria ser enterrado vivo debaixo das ruinas das Tulherias
todo o cidadão que ousasse pedir á França 14 milhões para viver. É que Raspail,
a intelligencia sempre apta para organisar, foi egualmente o braço
constantemente
pronto para resistir.
Portentosa
existencia, que ficará na historia entre as mais bellas e mais extraordinárias legendas
do genio do homem! Destinado por seu pae á carreira ecclesiastica, foi educado
n'um seminario, começou por ser um theologo. Era porém de tal modo intenso e
explosivo o seu amor de verdade e do progresso que, principiando por ensinar theologia
aos dezenove annos, acabou por alcançar a gloria immarcessivel de ser condemnado
aos oitenta, aos oitenta annos de idade!, por abuso da liberdade de pensamento!
O poder espiritual do mundo moderno era representado em França por uma trindade
sacrosanta: Victor Hugo, a força do sentimento; Raspail, a força do
trabalho; Littré, a força da philosophia. D'esses tres anciãos o primeiro
que desceu ao tumulo é o que mais fecundo exemplo nos podia legar, porque as
virtudes que o assignalaram são d'aquellas que dependem mais da vontade que do
entendimento. Esse exemplo de uma actividade sempre enthusiasta, juvenil e
ardente, em nenhuma outra parte é mais precioso do que na sociedade portugueza,
onde as idéas radicaes, que são as sentinelas avançadas da civilisação, tão raramente
encontram servidores desinteressados que as mantenham; onde a mocidade mais
vivaz e intelligente está defendendo no parlamento e no jornalismo as opiniões mais
retrogradas, onde finalmente o futuro não tem partido. Possa a memoria do
sublime Raspail alentar a perseverança e a firmeza no coração d'aquelles que,
longe de todas as correntes officiaes se sacrificam heroicamente pelo estudo
desprotegido, pelo trabalho talvez calumniado, talvez perseguido, ao amor e ao aperfeiçoamento
dos seus similhantes! Que todos os que são moços e fortes se inclinem sobre
esta campa onde repousa um triumpho, e reflictam, que é na pedra tumular de
Raspail que deverão aguçar o fio das suas espadas todos aquelles que combatem
pela consciencia e pela verdade!» In Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, As
Farpas, Janeiro 1878, Crónica Mensal, 3ª Série, Tomo I, Tipographia Universal, Principia
Editora, 2003-2005, ISBN 979-972-881-840-0.
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