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«Regresso
ao passado, ao passado da nossa origem. Regresso pois à baixa
Idade
Média, essa noite de dor e maravilha, onde as estrelas brilharam pela derradeira
vez. Sei do que falo; já por lá andei tempo que baste a deitar raiz e borla, quanto
mais a contemplar de raspão um céu de estrelas. De mãos livres e olhos atentos,
sempre à pata, bati e rebati durante um carro de anos fragas e recessos, visitei
Inês em Albuquerque, chorei com Pedro em Coimbra, acompanhei Leonor Teles em Barcelos
e na corujeira de Pombeiro, segui Fernando em Valada do Ribatejo, vi Nuno Álvares
açodado em Lisboa. Por lá me demorei tantos anos, por lá andei com tanto desejo
e encanto, e tão de espaço, que fiquei a pertencer mais a esse tempo que ao meu.
Para bem dizer, ninguém hoje dá por mim; sou um fantasma, uma sombra sem forma a
pairar sobre as ruas. A minha voz não se ouve; a minha presença não se vê. Sou um
espectro invisível. Vivo no passado, não no presente. Mas isso me chega para ter
um rumo, que é afinal a forma menos traiçoeira de ser infeliz.
Agora,
para gáudio meu, regresso à luz onde existo. Materializo o meu espectro e recupero
a minha voz. Ganho sangue e corpo em contacto com o passado; vou de novo
visitar a baixa Idade Média. Não posso deixar de andar à volta de Pedro de
Portugal. Este rei é a minha ideia fixa. Cada vez me comovo mais com a sua figura;
a sua vida magnetiza-me. É um íman poderoso, uma luz quente e cega, em torno da
qual giro sem parar como os planetas giram em torno do So1. Este Pedro de Portugal
foi o inventor da Saudade e isso basta para fazer dele o meu credor eterno,
cuja história comparo à mítica existência de Orfeu. Como não, se a morte da linda
Inês o deixou tão inconsolável como a de Eurídice deixou o filho de Eagro? Assim
o lírico clássico da Trácia desceu aos Infernos para recuperar a esposa e o
fantástico rei de Portugal exumou no agro de Santa Clara com as grossas garras
de medievo os ossos esburgados da amante. Um amansava feras com a lira, o outro
encantava ursos com o pandeiro. Orfeu acabou dilacerado pelas Bacantes nas
bárbaras florestas do Norte e Pedro findou perseguido e esquartejado pelas Harpias
do sono nos adustos areais do fim da Terra.
Eu testemunhei
o amor de Constança e de Inês. Vi Pedro dividido entre duas mulheres que se extremavam
e por isso entre si disputavam os beijos do príncipe. Constança, a mimada filha
de João Manuel que veio de Castela casar com Pedro no ano da batalha do Salado,
tinha mais anseios de Pedro que ciúmes de Inês. E esta, mais nova e inocente, menos
lida em Catulo e Ovídio, só se entregou a Pedro porque Constança, sua ama, lho sussurrou.
Na rude boca de Pedro pôde assim, sem escândalo nem remorso, saborear a jovem princesa
o sangue virgem da sua serva, tão mimoso e fresco como vinho novo. O círculo cortês
de Alenquer, vila da alçada da princesa, foi nesse período mais ardente e explosivo
que o da ilha de Lesbos no emancipado tempo de Safo e de Alceu. Teve Constança nas
escarpas de Alenquer o seu rochedo de Lêucade. Não tardou a precipitar-se do cume
com um grito de desespero, os cabelos soltos, a arder na tormenta da paixão, desaparecendo
para sempre nas ondas revoltas da noite e do esquecimento. Ficaram Pedro e Inês,
um diante do outro, sós, a tremerem de medo e erotismo. Na imaginação dos dois estava
atravessado um cadáver de hetera, melhor, de hieródula. Estreitaram-se então num
abraço cego, prometendo um ao outro protecção e amor eterno.
No breve
instante em que Pedro desamparou a rosa, ceifou-lha com um único e certeiro
golpe de espada o fero pai, o temível, cobiçoso e sardónico Afonso IV Manchou-se
o chão para sempre com aquelas desfolhadas pétalas e ainda hoje nos arredores
do Mondego as fontes choram aos solavancos, com borbotões escuros de sangue, por
acto tão nefando. Veio depois do homicídio de Inês a insuportável saudade de
Pedro. Que solidão glacial! Que desolação negra! Nenhum outro, a não ser ele, que
se tinha pelo pior dos três, sobrevivera ao mais gigantesco incêndio de amor que
a faixa ocidental da Hespanha ainda vira. Ele era um espectro rodeado de mortos,
mas a sua imaginação, atravessada por dois alvos cadáveres femininos em decomposição,
era combustível bastante para pegar lume ao breu viscoso da noite. Ardia Pedro
na sua solidão, qual estrela adamantina e solitária a consumir-se na escuridão da
noite fria. Por isso, invicto e ébrio, exumou do esquecimento os restos descarnados
de Inês e com o hálito crestado pelo fogo do Amor decidiu, num beijo escaldante,
insuflar nas geladas pedras daqueles ossos um sopro eterno de vida.
O reino
está em festa! Portugal volta a ter rainha!, gritavam com júbilo renovado e convicta
esperança os pajens e os charameleiros do rei no caminho para Alcobaça. E indicavam
com as mãos, sorriso rasgado no carão terroso, a rainha morta, a balouçar desconjuntada,
no estrado das andas, entre dois coxins de seda pálida. Ó sublime loucura da Saudade!
Ó tragédia transcendente! Foi com a força do teu desejo que os Deuses criaram o
mundo. Cantei assim outrora, à força de apóstrofes, a doida solidão do rei Pedro
como cantei depois, quando me apertava por revisitar estes lugares, os amores tórridos
e proibidos de Fernando e de Leonor, que são ainda, vinte anos depois, o
prolongamento do incêndio que alumiou a pedregosa terra portuguesa, pois
Fernando foi o primeiro e mais formoso resultado da combustão do trio de Alenquer
e Leonor a ígnea haste que lhe chegou lume. Vê-se tão bem na desordem amorosa
de Fernando todo o mimo castigado de Constança. E quanto a Leonor, nunca o amor
ardeu tão livre e soberano na seca terra do ocidente hispânico como nesta figura
infeliz mas senhoril. Que louco e soberbo amor se fundiu no crisol do seu coração!» In
António Cândido Franco, Os Pecados da Rainha Santa Isabel, Ésquilo, Lisboa,
2010, ISBN 978-989-809-289-2.
Cortesia
de Ésquilo/JDACT