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Basílica
de São Pedro. Cidade do Vaticano: domingo, manhã
«Ele
não desceu dos Céus com trompetes. Os anjos não começaram a cantar. O Sol não
escureceu, e a estrutura da antiga basílica permaneceu incólume. Entrou
devagarinho, sem fanfarra, embora a cada passo que desse o mundo começasse a
mudar. Não que a sua aparência exterior desse qualquer indicação do que estava
para vir. Um homem despretensioso com calças de ganga gastas. Uma camisa
cinzenta, ligeiramente amarrotada. Os sapatos moderadamente estafados. Ele dava
tudo menos nas vistas. Mais tarde, ninguém conseguia lembrar-se de o ver entrar
na Basílica de São Pedro. Nem um, dos milhares que ali se juntaram, o viu
passar pela ampla porta ocidental, nem entrar no grande espaço concebido para
reflectir a reunião gloriosa do Céu e da Terra. A única coisa de que se
lembravam foi da maneira como a sua caminhada silenciosa lhes tinha chamado a
atenção quando já se encontrava entre eles. Mas da sua atitude, ali no coração
secular da Cristandade, lembravam-se de cada detalhe. A maneira como se
deslocava calmamente pela nave central durante a Missa Solene pontifícia. A
maneira como homens e mulheres se tinham inconscientemente afastado para lhe
abrir caminho, enquanto os seus filhos tentavam chegar a ele, inexplicavelmente
atraídos. A maneira como todos fizeram silêncio quando ele se aproximou, e como
os seus olhares se demoraram nele, enquanto se deslocava. Lembravam-se disso.
A
sua postura mostrava determinação, embora caminhasse despreocupadamente pelo
meio da multidão. O cabelo com apenas alguns centímetros de comprimento,
ligeiramente ondulado e com tons de castanho-dourado, parecia estranhamente
claro na luz alaranjada da igreja antiga. Ao deslocar-se na direcção do grande
baldaquino de Bernini, os seus olhos olhavam em frente. Suaves e serenos, mas fortes.
Todos se lembravam dos seus olhos. Na outra extremidade da nave de 211 metros,
estava o celebrante principal da missa, todo de branco reflectindo a
luminosidade, dobrado sobre o altar-mor. Embora a sua debilidade corporal
transmitisse a mensagem eficazmente por si só, o magnífico trabalhado de bronze
por cima dele reforçava o facto de que, apesar de toda a fama e poder mundanos
do pontífice, era, mesmo assim, uma figura menor perante a majestade de Deus.
Estava
rodeado por dois cardeais concelebrantes, e entre eles e ele estavam os
habituais auxiliares que iam para todo o lado com o papa atormentado pela
doença, segurando pelos cotovelos a sua figura torcida nos momentos do culto
que exigiam que ele estivesse de pé. Estava longe de ser um idoso, mas o tipo
específico de estenose espinhal de que sofria desde criança tinha-o deixado
permanentemente desfigurado e incapaz de estar de pé sem ajuda. Os efeitos
crónicos dessa enfermidade, contudo, nunca lhe tinham enfraquecido o espírito. Apenas
o tinham fortalecido, e o homem que os media
tinham denominado com crueldade o papa aleijado era tanto mais amado pelo
seu rebanho, quanto mais fraco era o corpo que lhe tornava as suas convicções
espirituais interiores tão evidentes. O papa e os seus auxiliares tinham ao seu
lado um conjunto de padres e uma corte completa de servidores engalanados com
as suas roupagens litúrgicas mais vistosas. Atrás deles, em estrados
especialmente construídos para o efeito, os elementos do coro da Capela Sistina
enchiam o espaço com o latim angélico do Sanctus.
Os próprios anjos, havia mais tarde de lembrar uma idosa, não conseguiriam produzir
um som mais glorioso do que aquele.
Santo,
Santo, Santo,
Senhor
Deus do universo...
Bem-aventurados
os que vêm em nome do Senhor.
O
estranho dirigiu-se lentamente para a frente. O papa levantou os olhos dos
instrumentos do sacrifício sem sangue, o cálice e a patena de ouro martelado,
com o seu rosto reflectindo a glória que sentia em cada celebração do culto
sagrado. Podia ver-se claramente, quando levantou o pescoço dorido e olhou para
os fiéis, com os olhos cor de avelã a reflectirem os reflexos do vinho carmesim
do cálice, que o herdeiro da função do Apóstolo Pedro estava completamente
absorvido no sacrossanto rito litúrgico. Só quando olhou por cima do seu
rebanho é que o pontífice viu a aproximação do estranho pela primeira vez. Foi,
então, que o inexplicável começou a acontecer. À frente da fila de cadeiras na
nave central da basílica, logo a seguir às cordas vermelhas que mantinham os
fiéis a uma distância respeitável das eminências clericais, os vívidos
uniformes cerimoniais azuis, vermelhos e laranja da Guarda Suíça formavam uma meia-lua
à frente do altar-mor. Os homens dentro dos uniformes, que pareciam saídos de
um carnaval renascentista, figuravam entre os elementos de protecção militar
mais devotados e mais bem treinados do mundo». In Tom Fox, Dominus, 2015,
tradução de Ângelo Santana, Topseller, 20/20 Editora, ISBN 978-989-883-913-8.
Cortesia
de Topseller/20/20 Editora/JDACT