sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Etnografia de Os Lusíadas. Alfredo Reis Borges. «As estrofes que se seguem denotam a curiosidade dos nossos marinheiros em face de estranhos povos contactados em regiões distintas, verificando-se também idêntica reacção por parte dos respectivos indígenas»

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Breve questionário etnográfico
«Não se trata rigorosamente de um questionário, isto é, de uma compilação metódica de perguntas como interessa a este tipo de método de investigação etnográfica. É, pois, um interrogatório oral baseado no método de inquérito directo, bastante empírico sob o aspecto etnográfico e de reduzidos requisitos. As estrofes que se seguem denotam a curiosidade dos nossos marinheiros em face de estranhos povos contactados em regiões distintas, verificando-se também idêntica reacção por parte dos respectivos indígenas.
Quando da chegada à ilha de Moçambique apareceram uns pequenos batéis e os marinheiros interrogavam- se:

Que gente será esta? (em si deziam)
Que costumes, que Lei, que Rei teriam?
(I,45)

E antes de completamente ancorados já subiam os negros pelas cordas da nau capitania onde foram bem recebidos pelo capitão (Vasco da Gama) e

Comendo alegremente, perguntavam,
pela Arábica língua, donde vinham,
quem eram, de que terra, que buscavam,
ou que partes do mar corrido tinham.
……………………………
(I,50)

Por via do intérprete Fernão Martins foi dada a seguinte resposta:

……………………………………….
Os Portugueses somos do Ocidente,
imos buscando as terras do Oriente.
(I,50)

Do mar temos corrido e navegado
toda a parte do Antárctico e Calisto,
toda a costa Africana rodeado,
diversos céus e terras temos visto.
……………………………..
(I,51)

.....................buscando andamos
a terra Oriental que o Indo rega;
………………………………
(I,52)

E depois destas respostas disseram:

…………………………
Mas já razão parece que saibamos
(se entre vós a verdade não se nega)
Quem sois, que terra é esta que habitais?
……………………………………
(I,52)

Responderam:

Somos (um dos das Ilhas lhe tornou)
estrangeiros na terra, Lei e nação;
que os próprios são aqueles que criou
a Natura, sem Lei e sem Razão.
Nós temos a Lei certa que insinou
o claro descendente de Abraão,
que agora tem do Mundo o senhorio,
a mãe Hebreia teve e o Pai Gentio.
(I,53)

Esta Ilha pequena que habitamos
É em toda esta terra certa escala
de todos os que as ondas navegamos,
de Quíloa, de Mombaça e de Sofala.
E, por ser necessária, procuramos,
como próprios da terra, de habitá-la;
e, por que tudo enfim vos notifique,
chama-se a pequena Ilha: Moçambique'.
(I,54)

E até ao dia seguinte, enquanto aguardavam a visita do sultão,

…………………………………….
Qualquer então consigo cuida e nota
na gente e na maneira desusada,
…………………………………….
(I,57)

Recebe o Capitão alegremente
 Mouro e toda a sua companhia:
………………………………..
(I,61)

Os marinheiros curiosos,

……………………………………
Notando o estrangeiro modo e uso
e a linguagem tão bárbara e enleada.
Também o Mouro astuto está confuso,
olhando a cor, o trajo e a forte armada;
e, perguntando tudo, lhe dezia
se porventura vinham de Turquia.
(I,62)

E mais lhe diz, também, que ver deseja
os livros de sua Lei, preceito ou fé,
pera ver se conforme à sua seja,
ou se são dos de Cristo, como crê;
e, por que tudo note e tudo veja,
ao Capitão pedia que lhe dê
mostras das fortes armas de que usavam,
Quando cos inimigos pelejavam.
(I,63)

Responde o valeroso Capitão,
por um que a língua escura bem sabia:
…………………………………
(I,64)

A Lei tenho d'Aquele a cujo império
obedece o visibil e invisibil,
aquele que criou todo o Hemisfério,
tudo o que sente e todo o insensibil;
que padeceu desonra e virtupério,
sofrendo morte injusta e insofribil,
e que do Céu à Terra, enfim, deceu,
por subir os mortais da Terra ao Céu.
(I,65)

Deste Deus-Homem, alto e infinito,
os Livros que tu pedes não trazia,
que bem posso escusar trazer escrito
em papel o que na alma andar devia.
Se as armas queres ver, como tens dito,
comprido esse desejo te seria,
como amigo as verás, porque eu me obrigo
que nunca as queiras ver como inimigo.
(I,66)
[…]

As estrofes aqui reunidas revelam bem a curiosidade inata que leva os Portugueses a interrogar-se a respeito das gentes que viam de costumes tão estranhos. Pela sua clareza não nos deteremos muito sobre as suas análises, fazendo apenas breves referências julgadas necessárias a algumas delas. Na ilha de Moçambique formulam o seguinte questionário oral, por quererem saber toda a verdade:
  • 1. Quem sois?
  • 2. Que terra é esta que habitais?
  • 3. Qual é a vossa Lei (religião)?
  • 4. Que Rei (organização social e política)?
In Alfredo Reis Borges, Etnografia de Os Lusíadas, Sociedade de Geografia de Lisboa, 1996.

continua
Cortesia de SG de Lisboa/JDACT

Eu Subi a Grande Muralha. Jaime Roseira. «As portas da China estão abertas aos estrangeiros, incluindo os Portugueses. Desembarcou com um cartão de estudante, disposto a trocar dinheiro no câmbio negro e aproveitar a ingenuidade sincera que ainda caracteriza os Chineses. Os Portugueses não viajaram tudo no século XVI e a China fica mais perto do que a Lua»

Jiuquan, uma vendedora de gelados, disfarçada de mulher invisível
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As portas da China estão abertas aos estrangeiros, incluindo os Portugueses. O autor desembarcou com um cartão de estudante, disposto a trocar dinheiro no câmbio negro e aproveitar a ingenuidade sincera que ainda caracteriza os Chineses. As personagens são imaginárias, mas as situações rigorosamente verdadeiras. A China é suficientemente criativa para dispensar a ficção. O livro pretende servir como um guia de viagem e mostrar que pode ser fácil e barato, acabando com a principal desculpa para não ir. Os Portugueses não viajaram tudo no século XVI e a China fica mais perto do que a lua. É o maior espectáculo do mundo, em cena há dois mil anos, com um bilião de figurantes presentes todos os dias para representar o papel das suas vidas’. In Jaime Roseira.

Hong Kong
«Cruzaram a baía cinzenta à procura da pista no meio dos arranha-céus. Rasando a água o avião abriu caminho pelo aglomerado de casas incaracterísticas da zona residencial. Nada tornava evidente que a China ficava ali mesmo ao lado. A Pérola do Oriente cristalizara nos contornos de uma imagem exótica que exigia materialização, como se fosse possível um paraíso de cinco milhões de habitantes concentrados em pouco mais de um quilómetro quadrado.
Pelo trânsito denso, não se lembravam que os tivessem alertado para a imagem de congestionamento que os apanhava de surpresa. O autocarro virou na Nathan Road, espinha dorsal que alinha as ruas e os homens de Kowloon. Forrada de lojas, a avenida é um imenso centro comercial onde os anúncios luminosos se debruçam como trepadeiras luxuriantes sobre a faixa de circulação. Suspensos dos altos edifícios, transformam Hong Kong numa feira popular de néon vertical onde é Natal todo o ano e as luzes comunicam ao passante a alegria de um brilho fugaz. Foi a vista do primeiro andar do autocarro que aos poucos os reconciliou com a cidade.
João olhou a multidão escura e anónima que enchia os passeios com o movimento cruzado de duas massas compactas. Com o cortejo interminável de montras, descobriu em cada vulto um citadino igual aos de qualquer urbe industrial. Vir encontrar o Ocidente tão longe, escondido no meio da Ásia, trouxe-o de novo para uma disposição depressiva. Hong Kong revelava-se uma caixa de esferovite a flutuar no Mar da China, atulhada de maquinaria electrónica e todos os contrabandos do Ocidente ao preço mais baixo do mundo.
Era a Disneylândia do comércio, o reino da caixa de cartão, e o desapontamento de João teria continuado se não fosse o sinal do condutor para descerem. Passeando numa China Town à escala natural, Rita sentia-se feliz. Hong Kong acendera para ela todas as luzes e nem o frio cortante do anoitecer lhe diminuía o prazer de estar enfim na China, ou pelo menos no meio de Chineses.

Oitenta dias à volta na China, soltos como pássaros numa gaiola com o tamanho de um continente, João e Rita arrancaram as raízes à beira-mar plantadas para percorrer um itinerário romanceado que conta a China. Vendo-a desdobrar-se como um rolo pintado, subindo a Grande Muralha e realizando a viagem dos anos oitenta, o roteiro de dezasseis mil quilómetros descreve trinta cidades e deixa-se surpreender pela sensação de descoberta que a China proporcionou aos primeiros visitantes depois de meio século de isolamento’.

Aproximando-se de João segurou-lhe na mão e respondeu ao apertar intenso com que ele recebeu os seus dedos, esquecido da apreensão que sentia. Se não fosse a mochila ter-lhe-ia passado o braço à volta do pescoço e beijado com paixão. Beijar Rita no meio do néon de Hong Kong, agora que a ideia lhe tinha surgido, tornou-se uma necessidade imperiosa mas com as mochilas iria sair desajeitado e guardou o beijo contrariado para quando fossem jantar.
Quase no fim de Nathan Road, Chunking Mansions é um conglomerado de edifícios onde à mistura com escritórios, comércios e habitações superlotadas, alguns apartamentos foram forrados a beliches. Nestes quartos interiores onde uma noite de sossego se adquire por poucos dólares, vêm arrumar-se os Ocidentais que de mochila desembarcam na cidade. João perguntou esperançado se havia quartos de casal e dispunha-se a procurar outro sítio mas a determinação implacável de Rita em ficar sempre no alojamento mais barato forçou-o a mudar de ideia. O melhor que arranjaram foi camaratas em extremos opostos do mesmo quarto e não seria nessa noite nem nas seguintes que a componente romântica da estada em Hong Kong teria lugar para materialização.
Com o fechar das lojas as ruas esvaziaram, deixando passar livremente o frio intenso de Março que depressa os trouxe de volta ao hotel. Virados para a televisão, o grupo de refugiados ocidentais suportou um após outro os débeis programas, afinal os mesmos que nos países de cada um. Só os anúncios em chinês lhes recordavam que estavam na China.


Vista de Kowloon a ilha é um fabuloso horizonte eriçado de betão, como um anel luminoso que se esbate contra as colinas íngremes e descarnadas. De noite, brilhando ao longe como um clarão, atrai aos milhares as populações fronteiriças de camponeses que pensam escapar ao rigor de uma vida de trabalho. Na impossibilidade de obter passaporte e não podendo sem consequências regressar ao continente, a hipótese de sair não existe para a maioria. Desprevenidos, vêm acumular-se numa prisão cujos muros têm o contorno sinuoso do Mar da China, condenados a circular sem descanso como no recreio de uma cadeia». In Jaime Roseira, Eu Subi a Grande Muralha, Um Guia Romanceado da China, Edição do Autor, Viseu-Tipografia Guerra, Lisboa, 1988.

continua
Cortesia de Jaime Roseira/JDACT

Música. Niccoló Paganini. «Se todos os artistas da terra parassem durante umas horas, deixassem de produzir uma nota de música, um quadro, fazia-se um deserto. Acreditem que os teares paravam, e as fábricas, as gares ficavam estranhamente vazias, as mulheres emudeciam. Deste modo, seria uma coisa explosiva…»

Cortesia de wikipedia


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Narração da Inquisição de Goa. Charles Dellon. Miguel Vicente Abreu. «… os amores malogrados, os rancorosos despeitos, tudo enfim de que se usa e se abusa, era, as mais das vezes, outros tantos motivos ao émulo gratuito para ir tristemente denunciar o seu inimigo à Inquisição (maldita) e fazer vitimar traiçoeiramente um inocente»

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‘A Historia é rara! In Heidegger.
Será só arqueológico o interesse desta tão célebre e mal conhecida Narração de Dellon? Numa cultura, a portuguesa, que colheu durante três séculos o sistema inquisitorial (prolongado já no nosso tempo por mais 48 anos), e que em simultâneo criou um país de negreiros durante quatro séculos, a história da Inquisição (maldita) não pode simplesmente fruir-se no sossego distanciado da leitura. Essa história mantém-se ainda em múltiplos interstícios da vida mental portuguesa, que vão da submissão canina às hierarquias até à impopularidade notória de quem nega os deuses sociais. Tem outros nomes hoje, e outras teias, o Santo Ofício (maldito) de tão má memória’.

«Não são menos de repreender os prémios, que os delatores recebem, do que as suas más acções, porquanto resolvem tudo pelo ódio e pelo terror. Lavrava nos servos a corrupção contra os senhores, nos libertos contra os patronos; e até as pessoas que não tinham inimigos eram por seus amigos oprimidas.
[...] Este livro, impresso na Holanda no ano de 1667, se intitula Relation de I'Inquisition de Goa, em que o seu autor, o médico francês Dellon, faz públicos os sofrimentos de quatro anos de sujeição que teve à inquisição (maldita) de Goa, e dá uma curiosa noção histórica do regime daquele tribunal, do seu edifício, das suas especialidades, etc.
Remontando à origem daquela instituição em geral, diremos aqui, sem tacha de sermos exagerados, e mesmo com uma verdade muito sabida na república literária, que em todos os países que admitiram o tribunal da Inquisição (maldita) se tornou ele um horrível flagelo da sociedade humana; um tribunal feroz e sanguinário; e um recurso constantemente aberto ao inimigo de qualquer homem, que por talento, riqueza ou outro motivo se avantajasse ao seu semelhante; foi enfim uma fonte perene de incalculáveis males, os quais se sentiram principalmente em Goa, pais retalhado, como todos sabem, agora e sempre, por mil mofinas diferenças de castas, cores e seitas e urdido de tantas intrigas intestinas que produziam outros tantos émulos.
Leiamos as Memórias dos desembargadores Magalhães (Nova Goa, 1859) e Lousada
(Anais Marítimos e Coloniais), em que ambos aqueles escritores quase ipsis verbis dizem acerca da Inquisição (maldita) de Goa o seguinte:
  • ‘Por fim a Inquisição (maldita), esse tribunal de fogo, arrojado na superfície do globo para flagelo da humanidade, instituição horrível, que eternamente cobrirá de opróbrio os seus autores, fixou seu brutal domicílio nos férteis plainos do Industão. Ao aspecto do monstro tudo fugiu e desapareceu, mogores, arábios, persas, arménios e judeus. Os indianos mesmos, os mais tolerantes e pacíficos, pasmados de ver o Deus do cristianismo mais cruel que o de Maomé, desertavam do território dos portugueses para o dos mouros, com quem o tempo os havia congraçado, não obstante haverem deles recebido enormíssimos e incalculáveis males. Desta maneira ficaram ermos campos e cidades, como estão hoje Diu e Goa’.
Num tribunal destes facílimos era pois cevar-se a paixão da inveja, baixa e vil pela sua cobardia, e tão propensa para a calúnia quanto longe estava de ser em tempo algum descoberta, tribunal que, além de estender a sua jurisdição a cristãos, gentios e mouros, se abalançava ainda a julgar das acções mais indiferentes da sua vida, alcunhando-as de actos de culto, horrorizando-os e fazendo assim desaparecer com eles o vasto comércio desta terra.

Uma maior prosperidade em qualquer empresa, uma fortuna superior, uma acção de mérito e louvor, a importância social, a estima pública ganha pelo trabalho, maior benquerença que a do seu vizinho, o não ser da mesma casta, da mesma cor ou da mesma seita religiosa, uma opinião prejudicada, as rivalidades de famílias, os amores malogrados, os rancorosos despeitos, tudo enfim de que se usa e se abusa, era, as mais das vezes, outros tantos motivos ao émulo gratuito para ir tristemente denunciar o seu inimigo à Inquisição (maldita) e fazer vitimar traiçoeiramente um inocente, por ele acusado perante o mesmo tribunal, ou de ter pronunciado um discurso irreligioso, ou blasfemado da divindade, ou desacatado as imagens dos santos, ou motejado do tribunal, ou desconsiderado o supremo cabeça da Igreja, etc.; e cá em Goa até de ter apontado com o dedo o Orlem Goro, ou Casa Grande, que é como por antonomásia nomeavam o grandioso palácio da Inquisição (maldita) desta cidade!»

“Em parte alguma foi a Inquisição (maldita) mais rigorosa do que em Goa”. In Bouillet.

In Charles Dellon (1649-1709?), Relation de L’Inquisition de Goa, 1687, Leyden, Holanda, Narração da Inquisição de Goa, tradução e notas de Miguel Vicente Abreu (1827-1883), Nova Goa, 1866, Edições Antígona, Lisboa, 1996, ISBN 972-608-075-4.

Cortesia de E. Antígona/JDACT

Tratado dos Feitos de Vasco da Gama e de seus filhos na Índia. Diogo do Couto. «Não pode ele ser confundido de modo algum com a “Vida e feitos de D. Vasco da Gama, descobridor da Índia, e dos mais, fidalgos daquela família que militaram na Índia”, da autoria de Francisco de Andrade»

Nau do primeiro quartel do séc. XVI, pormenor de Vida e Martírio de Santa Auta
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«Uma introdução à leitura da obra inédita de Diogo do Couto sob o título, repare-se nos elementos principais que o compõem Tratado de todas as cousas socedidas ao valeroso capitão DomVasco da Gama primeiro Conde da Vidigueira: Almirante do mar da India: no descobrimento, e conquistas dos Mares e Terras do Oriente: e de todas as vezes que ha India passou, e das Cousas que Socederão nella a todos seus filhos aconselha que, antes do mais, a submetamos à crítica externa.
Assim, temos conhecimento da mesma haver sido referenciada por Diogo Barbosa Machado, pelo que decidimos inserir nesta publicação a Notícia dos Authores, que Escreveram de Diogo do Couto E Catalogo das Obras que Compos, extrahidas da Bibliottheca de Diogo Barbosa Machado, transcrita, aliás, na Parte Primeira, Década IV, da Asia, de Diogo do Couto, Lisboa, na Regia Officina Typografica, Anno MDCCLXXVIII, pp. XX-XXVI. Concretamente, quer o título, quer o plano da obra (duas Partes, a primeira com 28 capítulos e a segunda com 30), quer ainda a alusão a que o referido Tratado foi feito em Goa a 16 de Novembro de 1599, data de uma carta em que Couto o dirige ou dedica a Francisco da Gama, conde da Vidigueira, vice-rei e bisneto do descobridor da Índia, constituem indicadores, em nosso entender, suficientes para conferir identidade própria ao documento que agora divulgamos.
Por sua vez, Francisco Pereira, ao publicar em 1898 (Lisboa, Imprensa Nacional) o Tratado composto por Miguel de Castanhoso sob o título Dos Feitos de D. Christovam da Gama, uma das contribuições da Sociedade de Geografia de Lisboa para precisamente assinalar e Quarto Centenário do Descobrimento da India, escreve:
  • ‘No Manuscrito B-6-14 da Bibliotheca Nacional de Lisboa, attribuido a Diogo do Couto, referem-se os successos de D. Vasco da Gama e de seus filhos no Oriente. Este manuscripto é um livro de papel de 207 folhas de 0m, 29 x0,21m, encadernado, escripto com tres letras differentes do seculo XVIII. Tem por titulo: Tratado de todas as cousas socedidas ao valeroso capitião Dom Vasco da Gama primeiro conde da Vidigueira: Almirante do Mar da India no descobrimento, e conquistas dos Mares, e Terras do Oriente: e de todas as vezes que ha India passou, e das cousas que socederam nella a todos seus filhos. Dirigido a D. Francisco da Gama conde da Vidigueira Almirante do mar Indico, e visorrei da India. Por Diogo do Couto Cronista e Guarda mor da Torre do Tombo da India. A dedicatória é datada de Goa de 16 de Novembro de 1599. O tratado compõe-se de duas partes; na primeira contam-se os sucessos de D. Vasco da Gama nas suas três viagens á India; na segunda referem-se os feitos de seus filhos D. Estevam, D. Paulo, D. Christovam e D. Pedro da Silva no Oriente. A narração é idêntica á das Decadas da Asia de Barros e de Couto, umas vezes abreviada, e outras reproduzida verbalmente’.
Entre 1898 e 198O, data da publicação da 3.ª edição (Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora) de O Soldado Prático, de Diogo do Couto, com texto restituído, prefácio e notas por M. Rodrigues Lapa, o verbete do Tratado foi alterado e passou a andar deslocado. Mas, é melhor citarmos a Nota da página 13 da referida edição de O Soldado Prático:
  • ‘À última hora encontrámos na Biblioteca Nacional de Lisboa um manuscrito de Couto (nº 462), cujo verbere andava lamentavelmente deslocado do catálogo do Fundo Geral. É o Tratado de todas as cousas sucedidas ao valeroso capitão D. Vasco da Gama… no descobrimento e conquista dos mares e terras do Oriente. É, em suma, a crónica dos feitos de Vasco da Gama e de seus filhos, encomendada a Couto pelo vice-rei Francisco da Gama e terminada em Goa, a 16 de Novembro de 1599’.
Aliás, na folha de rosto do manuscrito que transcrevemos estão insertas ambas as cotas: B-6-14 e n.º 462.
Não pode ele ser confundido de modo algum, portanto, por exemplo, com a Vida e feitos de D. Vasco da Gama, descobridor da Índia, e dos mais, fidalgos daquela família que militaram na Índia, da autoria de Francisco de Andrade, embora, como lembrava António Coimbra Martins, em artigo publicado em 1981 (Paris, Fundação Calouste Gulbenkian), nos ‘Arquivos do Centro Cultural Português’, XVI, pp. 283-85, sob o título ‘Quem Na Estirpe Seu Se Chama…’ ‘l'un et l'autre demeurent inédits’». In Diogo do Couto, Tratado dos Feitos de Vasco da Gama e de seus filhos na Índia, organização de José Azevedo Silva e João Marinho Santos, Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras, Edições Cosmos, Porto, 1998, ISBN 972-762-081-7.


continua
Cortesia da FL da U. de Coimbra/JDACT

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

A Catedral Verde. João Aguiar. «Retomo o lugar que ocupava, em sua frente. - Desculpe. Já não sei o que estava a dizer. Ela sorri. - Não estava a dizer nada, porque eu ainda não tinha feito uma nova pergunta, que aliás vai ser a última, já tenho material que chegue. O que faz, neste momento? Vai sair em breve um novo livro?»


(1943-2010)
Lisboa
jdact e cortesia de joaquimsousa

Liturgia Secreta
«Por estranho que pareça na minha idade, eu ainda tenho, por vezes, alguns sonhos que não são pesadelos. O facto de os ter quando me encontro em estado de vigília (refiro-me, evidentemente, aos sonhos bons ou neutros; os pesadelos, esses, não escolhem estado) não prejudica a sua qualidade onírica nem o seu absurdo. Por exemplo, sonho muitas vezes com um mundo onde os heróis podem cavalgar sobre pradarias limpas e em florestas densas regadas por chuvas tépidas, que antes de caírem não colheram na atmosfera os vómitos gasosos das chaminés da indústria.
Um mundo, por falar em indústria, onde só são possíveis as actividades económicas que, independentemente dos discursos e da publicidade, sirvam para manter e fortalecer a vida, não para a destruir.
(Estou a falar de sonhos, insisto. Ainda assim: será grave, na minha idade?)
Um mundo onde a magia é real e não uma habilidade de palco e repousa nas mãos de sábios compadecidos. Eu sonho, e julgo que sempre sonhei, com um mundo, não perfeito, mas onde a perfeição pode ser apercebida. E onde as orações não se dissolvem no ar como se nada mais fossem que palavras. Eu sonho como se fosse um rapazinho cuja voz ainda não sofreu a mudança da adolescência.
E, quando regresso do sonho, o rapazinho desaparece e a minha voz está rouca de tabaco. De tabaco e, hoje, de chuva. Chuva. É o dilúvio absoluto, daqueles que abrem torrentes de lama e fazem cascatas de água suja e enchem a transbordar as sarjetas entupidas e trazem à rua os bombeiros para agravar os engarrafamentos.
A cidade jaz abafada em chuva e em cinzento, nem os anúncios luminosos conseguem dar-lhe (emprestar-lhe, digamos) um pouco de cor. Detesto o tempo de chuva na cidade.
As cidades deviam ter microclimas secos: choveria o estritamente necessário para lavar o ar, lubrificar as sarjetas e ajudar a rega das zonas verdes, nada mais. No campo é muito diferente. Em Vale de Monges, sou capaz de ficar tempos esquecidos a ver chover. Aí, a chuva oferece-me dias diferentes dos outros, com uma beleza diferente e muito sua, sons e perfumes muito seus. Por que raio não estou eu em Vale de Monges, por que raio estou eu aqui?
A cidade, repito-me, jaz cinzenta, aos meus pés. Mas isto não quer dizer que eu a domine; é antes um simples pormenor de localização e, de resto, o trono de onde eu a vejo é emprestado: o João Carlos arranjou este nono andar quando precisou de mudar de casa por vias do divórcio; o nono andar é seu e não meu.
Suponho que a vista é bonita em dias de sol. Porém, hoje não há nada que resgate esta imensidão de cinzento e de cimento. E se me debruçasse um pouco, o que não faço, veria o rio estagnado de carros imobilizados na rua, sem esperança de libertação próxima. Como não me debruço, porque está a chover mas também porque não gosto de olhar para baixo, a pique, só ouço a cacofonia impotente das buzinas, que se junta ao ruído um pouco mais discreto das gotas de chuva a martelar o vidro. Não é o mesmo som da chuva em Vale de Monges; esse é fresco e como que rendilhado, enquanto este é furioso e cheira, se é que um som pode cheirar., a engarrafamento e frustração.
Ainda assim, mal por mal, prefiro enfrentar aqui a provação da entrevista a fazê-lo numa Redacção. O que vem recordar-me: deixei, provavelmente, uma pergunta sem resposta. Volto as costas à janela, dou uns passos, olho novamente para a rapariga. Admito que gosto do que vejo. Cabelo alourado, olhos verdes de esmeralda pálida, um corpo esbelto, sem contornos exagerados, que se move com uma graça natural. Põe o maior cuidado em parecer descuidada; em fazer-nos crer que só olha para o espelho de passagem, sem parar e que não tem a consciência da sua própria beleza física ou não lhe concede importância.
O que, muito claramente, é falso, mas acho graça a este jogo.
Retomo o lugar que ocupava, em sua frente. - Desculpe. Já não sei o que estava a dizer. Ela sorri. - Não estava a dizer nada, porque eu ainda não tinha feito uma nova pergunta, que aliás vai ser a última, já tenho material que chegue. O que faz, neste momento? Vai sair em breve um novo livro?


A minha cara, sei-o há muito, é o reflexo fiel do meu pensamento, o que significa: trai-me constantemente. É o que sucede agora, porque a rapariga acrescenta logo a seguir: - Bem sei, há-de estar farto de ouvir isto, é a pergunta estafada que toda a gente lhe faz. Mas ao mesmo tempo é inevitável, não acha?
Pelo contrário, é perfeitamente evitável, penso eu, enquanto, com grande sinceridade, respondo que me encontro parado, à espera de uma ideia. Não falo, porque não vale a pena, da discreta angústia que essa espera me causa». In João Aguiar, A Catedral Verde, (A Crónica de Santo Adriano), ASA Editores, Porto, 2006, ISBN 972-41-2412-6.

Cortesia de ASA/JDACT

A Vida Quotidiana no Egipto no Tempo das Pirâmides. Guillemette Andreu. «O mar é uma porta para o desconhecido e causa temor, e o Delta um vasto pantanal de que apenas o centro é habitado, enquanto as franjas são deixadas para a criação de gado. A escassez de nascentes de água doce é um dos factores determinantes da fraca atracção exercida por esta zona»

jdact e cortesia de josemanuelreis

O Tempo das Pirâmides
«O Egipto do tempo das pirâmides é o dos alvores da civilização faraónica. Estende-se de 2700 a.C. até cerca de 1750 a.C. e corresponde, ao longo de quase um milénio, ao intervalo a que os historiadores modernos chamaram o Império Antigo e o Império Médio. Um dos traços comuns a todo este período reside no modo de inumação dos faraós: os seus túmulos são pirâmides de pedra monumentais que se erguem no deserto como símbolos de um poder universal. Este dealbar do Egipto faraónico não significa um começo vacilante. Pelo contrário, marca, para aquela antiga civilização, uma idade de ouro que viria a ficar na memória dos sucessores como apogeu e modelo a seguir.

Um pouco de história
Aproximadamente século e meio antes de 3000 a.C., na chamada época tinita, o sistema faraónico está, já estabelecido: o monarca, por direito divino, governa as duas terras, designação do Alto e do Baixo Egipto, reunidos sob a sua autoridade. É a sua administração que organiza o trabalho dos campos, começando a gerir a irrigação e a controlar a manutenção dos canais. Para facilitar o exercício do poder, desenvolve-se a escrita, por meio de ideogramas inspirados no mundo animal e vegetal das margens do Nilo. Aqui e ali, no segredo dos santuários, os sacerdotes fazem oferendas aos múltiplos deuses cuja intercessão permite manter a ordem cósmica e evitar o regresso ao caos.
A população egípcia começa a formar um grupo social composto por camponeses e artesãos, agrupa-se em aldeias nas duas margens do Nilo e vive da caça, da pesca, da recolecção, da agricultura e da pecuária. A implantação territorial faz-se em aglomerações instaladas fora das terras inundáveis mas perto dos terrenos de cultivo: está em curso o aproveitamento das cheias do Nilo, instigado pela necessidade de alimentar uma população cada vez mais numerosa.
Estendendo-se por mais de 1000 quilómetros, entre o Mediterrâneo e o coração de África, o Egipto é o berço de uma população originalmente heterogénea, porque marcada pelas características próprias das diversas migrações que conheceu no IV milénio. O cruzamento desses traços étnicos acabou por conduzir a um tipo egípcio notável e particularmente bem ilustrado na estatuária faraónica. Os retratos feitos pelos escultores egípcios dão conta de uma população de estatura mediana, com uma pele clara que o sol ardente tende a tisnar, e de finas feições não negróides. O cabelo é negro e liso, por vezes ondulado mas nunca crespo. Como é de esperar, quanto mais se avança para o interior de África, mais a fisionomia tem tendência para exibir traços negróides, influência natural do contexto geográfico.

antoinecapelle
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Entre 3000 e 1750 a.C., o vale do Nilo conhece um forte aumento demográfico, quando, já desde o início do IV milénio, uma agricultura cada vez mais bem coordenada veio tomar o lugar de uma economia de caça e recolecção. Calcula-se que em 3000 a.C. a população seja de 850 000 habitantes e que atinja os 2 milhões por volta de 1800 a.C. Os Egípcios deste período vivem na planície aluvial, com uma maior densidade entre Assuão e Quft, no Alto Egipto, e entre Faium e a ponta sul do Delta, no Baixo Egipto. Até uma época muito tardia, as regiões próximas do Mediterrâneo não atraem a população: o carácter essencialmente nilótico deste povo é, de resto, um dos seus traços constantes. O mar é uma porta para o desconhecido e causa temor, e o Delta um vasto pantanal de que apenas o centro é habitado, enquanto as franjas são deixadas para a criação de gado. A escassez de nascentes de água doce é um dos factores determinantes da fraca atracção exercida por esta zona. Em tais condições, podemos estimar a superfície do Egipto do tempo das pirâmides em aproximadamente 8000 km2». In Guillemette Andreu, L’Egypte au Temps des Pyramides, Hachette Littérature, 1999, A Vida Quotidiana no Egipto no Tempo das Pirâmides, Edições 70, Lisboa, colecção de História Narrativa, 2005, ISBN 972-44-1237-7.

Cortesia de Edições 70/JDACT

Goa Antiga e Moderna. Frederico Diniz D’Ayalla. «O morro da Aguada encimado por um bojudo reduto, como guarda avançada na foz do Mandovi, espalha em noites procelosas a luz que encaminha o nauta para as terras de Goa. Por baixo, à flor da água, correm as casas volteando a curva do promontório de Bardez…»

(1859?-1922?)
Goa
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Quem reviveu numa hora ardente
de sonho altivo e de paixão
a vida antiga e resplendente
do país tomado ao Idalcão.

Viveu decerto a vida heróica
dos seus avós que já la vão
num sonho augusto de alma estoica
numa ideal transfiguração.

Vida de sonho, breve embora,
ninguém a vive rúbida hora
se a lama o prende pelos pés.

Vivê-la é ter um peito forte
diante do mal e a dor e a morte
um coração bem português.
Soneto de Nascimento Mendonça, dedicado a Frederico D’Ayalla

Goa
Mal assoma a barra da Aguada, transpondo a última sinusidade da costa brava, ao sul despontam os casarios e os baluartes, caiados de branco, que mansamente vão subindo e encosta do promontório de Mormugão. Dobramos as praias de Galvão, mais propriamente rochedos batidos por grossas vagas, que de longe se ouvem quebrar com a monotonia e placidez próprias do oceano. No Inverno, por entre aqueles cachopos, espuma o mar as suas mal contidas iras. A onda monta, e desdobrando-se com fúria vai de arremesso contra os negros penedos, que a água tem cavado em configurações estranhas. Chocando-se, fundindo-se, as vagas rolam marulhando uns ruídos cavos, que a resistência da costa transforma em grito medonho. As águas espirradas pelo embate sobem como um véu de gaze prateado pelo sol. E em breve o que era coberto de um lençol branco e crepitante, desnuda-se e deixa ver as coroas de musgo e algas alastrando-se sobre o dorso dos rochedos, reluzentes, movediças, como as serpentes.
O morro da Aguada encimado por um bojudo reduto, como guarda avançada na foz do Mandovi, espalha em noites procelosas a luz que encaminha o nauta para as terras de Goa. Por baixo, à flor da água, correm as casas volteando a curva do promontório de Bardez, e defendidas do mar pelas cortinas quase simétricas, brancas e uniformes, como a dentadura de um leão. Estamos à boca do Mandovi sereno e brando.

Lusíadas
E correram para a glória lançados de uma pedra alta.
Brotaram como ventos debruados de cruzes e crescentes
ébrios de fome e loucos sem mar que lhes bastasse.
Amaram os horizontes rápidos de sal e de corais,
precipitaram-se no prazer e no sofrimento
como quem ama o clamor de um deserto açoitado pela aragem.
E, pouco a pouco, se espalharam num reino de ausências
crónica de uma alegria que tinha gosto a crueldade:
arrastaram sabres sobre carne jovem
temperaram muralhas com clarões de pólvora,
oh gente flagelada pelos signos do fogo
não coubestes dentro de vós
procurastes a companhia das estrelas.
Que encanto a vossa migração ensandecida!
Que sandálias no faro da distância!
Que chiqueiro na tenda de pimentas e rubis!
Era um divino rumor entre as palmeiras
e frondes
os perdestes como jardins à noite.
Adalberto Alves, in ‘Oriente em Mim

Na margem esquerda, rompendo por entre copados cajueiros, encara o mar o Convento do Cabo. Quantas vezes não ouvi eu os sinos da Aguada e do Cabo, no calado de um dia sereno e límpido, espalhando mansamente seus sons pelo níveo seio do imenso mar! Como essas notas aflitivas me traziam à mente os ecos gloriosos de um passado ruidoso e homérico! Como é triste espraiar a nossa saudosa vista pelo litoral eriçado de fortalezas e ir, após um aleluia fictício, assistir ao miserere entoado por entre as ruínas de uma cidade deserta! Uma legião de espectros nos espera para entoarmos uma elegia sobre o túmulo da nossa grandeza!

Ó cisne!
Deixa-me voar até aquela terra
onde reina o meu Amor.
Sem corda e sem balde
do poço tiram água as donzelas.
Lá há chuva, sem que haja nuvens
e banha a minha forma incorporal.
E em cada noite brilha a lua cheia
e em cada dia há luz que resplende
na miríade faiscante do sol.
Kabir (1398-1518), in ‘Canções de Amor

largo de S. Pedro em Murgão
ilustracao de armandopedro

Entre Gaspar-Dias e Reis-Magos, redemoínham as vagas nos bancos de areia. As ondas fervem, quebram-se, rodopiam, e as gaivotas, sacudindo as asas, dão caça aos peixes. O barco entretanto singra lentamente, evitando o baixio. Por entre as palmeiras espreitam as casas de campo e os casebres angulosos cobertos de ola, sobre os quais as gralhas, espicaçando a presa, grasnam de contentes. Sobre a areia quente de Caranzalem os pescadores compõem as redes, cantando. Vai-se descobrindo a parte ocidental de Pangim. O coreto de música, o hospital-barraca, as pontes de Minerva e Marta, as meias-laranjas e os bancos de pedra saltam aqui e ali no Campal, como alvas tendas em meio de um oásis. Largas ruas enfiam a vista para o interior da cidade, meio coberta de densos palmares. Nas tardes de Maio, a brisa da tarde rumoreja por entre os lestos ramos da palmeira um ciciar muito parecido com o bater das asas de uma ave; o vento do mar alto sacode os troncos das mangueiras e jaqueiras num ruído flácido e sussurrante, próprio do bosque; a areia volteia em espirais pelo Campal, e o mar ronca, imitando o despenhar de uma cascata, por entre os bancos de Gaspar-Dias». In Frederico Diniz D’Ayalla, Goa Antiga e Moderna, Ésquilo edições e multimédia, Revisão de Adalberto Alves, 2011, ISBN 978-989-719-001-8.
A saudade do Álvaro José (onde quer que estejas!)
Cortesia de Ésquilo/JDACT

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Semeador de Cultura e Cidadania. Inéditos e dispersos. Bento de Jesus Caraça. Alberto Pedroso. «… cientista e pedagogo de renome internacional; fomentador e dirigente de instituições e periódicos científicos e culturais; conferencista e autor de ensaios inesquecíveis. … repartiu sabiamente e com quotidiano empenho, a sua vida, e tão breve ela foi»

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Semeador de Cultura e Cidadania
A figura de Bento de Jesus Caraça, o seu magistério universitário e a sua actividade científica, o seu labor cultural e a sua constante intervenção cívica e política, marcou profundamente a vida portuguesa contemporânea, desde os últimos anos da década de 20 até aos nossos dias.
Professor catedrático da Universidade Técnica de Lisboa, cientista e pedagogo de renome internacional; fomentador e dirigente de instituições e periódicos científicos e culturais; conferencista e autor de ensaios inesquecíveis; militante comunista e impulsionador de movimentos unitários de resistência ao fascismo, clandestinos e legais, por tudo isto repartiu, sabiamente e com quotidiano empenho, a sua vida, e tão breve ela foi.
Detentor de excepcionais qualidades intelectuais, possuidor de uma vasta e sólida cultura científica, histórica, filosófica e artística e, além disso, abnegado obreiro apetrechado com as ferramentas do materialismo dialéctico e do materialismo histórico, Bento Caraça repudiou com firmeza o isolamento na "torre de marfim" do sábio e do pensador. Por isto o vemos, desde muito cedo, na primeira linha daqueles que, correndo os mais graves riscos, pela acção clandestina ou pela luta a peito descoberto, fizeram frente à repressão e ao obscurantismo do Estado Novo.
Homem de diálogo e de consensos, sem esquecer jamais os princípios essenciais que o norteavam, teve sempre, pela vida adiante, a preocupação de agitar ideias, convicto como estava e fez questão de sublinhar, ao terminar a conferência A Escola Única, que agitar ideias, a despeito do que dizem certos escribas abafadores de cultura, agitar ideias é muito mais do que viver, porque é ajudar a construir a vida.
Foram anos tormentosos, os da primeira metade do século passado, e foi nesses anos que Bento Caraça viveu, sendo contemporâneo, portanto, no plano nacional, do derrube da monarquia e das esperanças nas promessas trazidas pela Primeira República, bem cedo perdidas; da vida perturbada desta e da chegada da ditadura militar, que a deitou por terra; do malogro das várias tentativas revolucionárias, em especial as de 1927 e 1931, contra essa mesma ditadura militar; da ascensão do Estado Novo e da formação e desenvolvimento do movimento antifascista em Portugal; da fascização dos sindicatos e da greve insurreccional de 1934, do anseio a breve trecho frustrado de derrubar o fascismo, logo que a Segunda Guerra Mundial terminou.
Do mesmo modo, foi contemporâneo, a nível internacional, da Primeira Guerra Mundial e da revolução socialista de Outubro; da devastadora crise económica mundial de finais dos anos 20 e começos da década de 30; da tomada do poder pelo fascismo e pelo nazismo em vários países europeus; da implantação da república em Espanha e das experiências exaltantes da Frente Popular, neste país e em França. Foi contemporâneo, ainda, da Guerra Civil espanhola e da Guerra Mundial de 1939-1945 e, por fim, da esperança renascida, com a vitória das forças democráticas do mundo sobre o nazi-fascismo.
Contemporâneo de tantos e de tais acontecimentos, dessa época de transição, uma ponte de passagem entre aquilo que desaparece e o que vai surgir (as palavras são suas), em nada surpreende, ao percorrermos as páginas da história portuguesa desses anos dolorosos mas de esperança, nelas encontrarmos a cada passo a presença moral e a presença física de Bento Caraça:
  • a sua abnegada intervenção nas grandes batalhas travadas pelo povo português ao longo dos anos contra o obscurantismo e pela cultura,
  • a sua participação na luta contra a guerra e o fascismo,
  • o seu empenho de todas as horas nos movimentos cívicos que pugnavam pela reconquista das liberdades.
Em suma:
  • a sua participação no despertar a alma colectiva das massas, que por demais sabia ser a grande tarefa que está posta, com toda a sua simplicidade crua, à nossas geração, como reconheceu perante os jovens da União Cultural Mocidade Livre que o escutavam na sede da Universidade Popular em 25 / 5 / 1933, durante a inesquecível conferência que aí realizou.
Ainda não surgiu a biografia de Bento Caraça tão ansiosamente esperada, o seu retrato em corpo inteiro. Mas o que já é conhecido acerca da sua vida , da intervenção que teve em áreas essenciais da sociedade portuguesa do seu tempo, no ensino, na cultura, na vida cívica, permite avaliar a dimensão e a qualidade dessa intervenção, quanto ela foi determinante em tantos casos». In Alberto Pedroso, Bento de Jesus Caraça, Semeador de Cultura e Cidadania. Inéditos e dispersos, Campo das Letras Editores, Porto, colecção Cultura Portuguesa (1.38.010), 2007, ISBN 978-989-625-128-4.

Cortesia de Campo das Letras/JDACT