«Desejava o lugar. Achava-se com direito a ele. Em Janeiro do ano
seguinte à morte do infante João, o conde de Ourém entra, e tal como o pai já o
fizera, em guerra com o primo. O pai, sendo duque, vinculou o título à família
que era quase uma família real, rica, soberana. Como o senhor de Bragança
morrera sem herdeiros, o Barcelos e o filho, a correr, ainda estava quente o
corpo do rei Duarte, lá foram até Évora onde se alojava a Corte, a pedir o
título e o senhorio-Ourém, o sábio conde, chegou ainda antes do pai e recebeu o
título e a terra. Quando o gotoso Barcelos chegou, o irmão, negligentemente,
afirmou já ter outorgado a benesse ao filho. Entre eles compuseram as coisas. O
pai recebeu do filho a terra de que foi duque. Agora o Ourém queria ser condestável.
O regente Pedro recusou-lho peremptoriamente.
O ano continuava mau para a família real, no que tocava ao infante Pedro.
É em Junho que sabe da morte miserável do irmão Fernando no seu cativeiro de
Fez. Não sentia remorsos. Opusera-se sempre à política marroquina, mas
não sabia como reagiria o solitário de Sagres. Nem ninguém nunca soube.
Quando se pensa num império e se o visualiza, pouca importância têm muitas
vezes os homens que ficam pelo caminho. Isso era uma verdade. Só que na sua
alma em sangue o infante Henrique deve ter pago a alguém, a ele próprio, a
Deus, uma secreta agonia. Quantos anos
ele pensara nesse irmão abandonado, miserável, feito refém e escravo da
pertinente e implacável moirama cujo fanatismo é tão cruel como o dos cristãos?
Ainda em 1443 morria a Pedro o sobrinho, Diogo. O Regente nomeou, então,
condestável o seu próprio filho e recusou o cargo e o título ao conde de Ourém.
Este impôs a sua nomeação por razões de hereditariedade. Não era ele neto de D. Nuno Álvares
Pereira? Não fora João condestável por ser casado com uma neta do mesmo D.
Nuno? O Regente não confirmou nem aceitou as pretensões do primo. Nada,
nem ordem real, diploma ou qualquer outro documento comprovavam ou legitimavam
a hereditariedade do cargo. Ourém persistiu e o Infante disse-lhe asperamente que,
para um país de tão curta envergadura certamente lhe chegaria, por morte do
pai, ser duque e três vezes conde. O conde, danado, foi-se embora. E não
perdoou.
Foi, depois disto tudo que, no ano seguinte, enquanto se entabulavam
conversações através de Fernando, conde de Arraiolos, conversações que nunca
teriam o fim desejado, se soube da trágica morte da mãe do Rei em Toledo e aí,
mais uma vez, a suspeita envenenou os espíritos e a memória do Infante ainda
hoje.
D. Leonor morreu de repente com todos os sintomas aparentes de ter sido
envenenada e, ainda por cima, depois do seu grande inimigo e adepto do Regente,
Álvaro de Luna, ter vencido os seus inimigos aragoneses em Olmedo. A Rainha,
imiscuída por questões familiares nos complicados jogos políticos entre Aragão,
Castela, Navarra, sem apoios nem dinheiro, abandonada de todos, extingue-se,
depois de ver os irmãos vencidos e, o que é mais estranho é que Álvaro de Luna
era o que conquistara os louros, o que o Regente apoiava com reforços onde incluíra
o próprio filho condestável, apenas com dezasseis anos, e que combatera em
Olmedo. Os Infantes aragoneses foram vencidos. Um, Henrique, morreu em combate
e o outro, arrasado, refugiou-se nos Pirenéus. Ora Pedro, Regente de Portugal,
pela mulher pretendente a Aragão e Catalunha, por necessidades de paz, apoiara
Castela e Álvaro de Luna. Depois o Infante Pedro cometeu outro erro, ou não
seria? Em política existem momentos em que se joga tudo por tudo. Sucedeu que
logo após a morte de D. Leonor, em 29 de Fevereiro de 1445, a irmã D. Maria de Castela,
mulher do imbecil rei João II de Castela, morre envenenada em Villacastim.
Imediatamente é posto a correr o boato terrível que o condestável de Luna
envenenara as duas irmãs. Como o Regente de Portugal resolvera casar a
sobrinha, filha do Infante João, com o rei viúvo de Castela dizia-se
furtivamente que teria sido conivente.
O Regente Pedro tratava apenas das suas opções políticas, arrumava os sobrinhos,
olhava-lhes pelo futuro. A prova é o cuidado na educação dos filhos dos irmãos
mortos. É ele que escolhe para mestre da Infanta D. Catarina irmã de Afonso V,
e a conselho do padre João Rodrigues, que se escusou ao convite, o futuro
cardeal Jorge da Costa de que irei falar muito... e do qual dependeu também, em
parte, o meu destino, o do Reino, e o de Manuel que hoje é Rei de Portugal,
Manuel I». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II,
Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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