Manhã
Estou,
e num breve instante
sinto tudo,
sinto-me tudo.
Deito-me no meu corpo
e despeço-me de mim
para me encontrar
no próximo olhar.
Ausento-me da morte
não quero nada,
eu sou tudo
respiro-me até à exaustão.
Nada me alimenta
porque sou feito de todas as coisas
e adormeço onde tombam a luz e a poeira
A vida (ensinaram-me assim)
deve ser bebida
quando os lábios estiverem já mortos.
Educadamente mortos.
Novembro de 1979
Palavras que desnudo
Entre a asa e o voo
nos trocámos
como a doçura e o fruto,
nos unimos
num mesmo corpo de cinza,
nos consumimos,
e por isso
quando te recordo
percorro a imperceptível
fronteira do meu corpo
e sangro
nos teus flancos doloridos.
Tu és o encoberto lado
da palavra que desnudo
Abril 1981
Primeira palavra
Aproxima o teu coração
e inclina o teu sangue,
para que eu recolha
os teus inacessíveis frutos,
para que prove da tua água
e repouse na tua fronte.
Debruça o teu rosto
sobre a terra sem vestígio,
prepara o teu ventre
para a anunciada visita
até que nos lábios humedeça
a primeira palava do teu corpo.
Agosto 1980
Poemas de Mia Couto, in 'Raiz de Orvalho'
Poemas de Mia Couto, in 'Raiz de Orvalho'
JDACT