A Malograda Embaixada de Tomé Pires
a Pequim
Rui Manuel Loureiro
«Entre 1517 e 1518, uma importante expedição naval portuguesa, sob o comando
de Fernão Peres de Andrade, visitou o litoral meridional da China, com o
objectivo de normalizar as relações mercantis que tinham sido iniciadas poucos
anos antes. A bordo desta armada seguira Tomé Pires, o primeiro emissário
português despachado para aquele longínquo império, que fora desembarcado em Cantão
com uma comitiva constituída por mais de duas dezenas de pessoas, para aí
aguardar autorização imperial para prosseguir em direcção a Pequim. Em Agosto
de 1519, quando Simão de Andrade conduziu uma nova expedição lusitana ao
litoral chinês, a missão portuguesa ainda se encontrava na mesma cidade, após
dois longos anos de espera. A demora parece ter ficado a dever-se, em parte, ao
facto de o imperador Zhengde, durante esse período, se ter ausentado
frequentemente de Pequim, atrasando assim todo o normal expediente imperial.
Para além disso, a lentidão e a meticulosidade da burocracia sínica também
contribuiriam para dificultar o despacho da embaixada. Os portugueses
apresentavam-se pela primeira vez às autoridades chinesas, que não podiam
deixar de se interrogar sobre as origens deste povo navegante, previamente
desconhecido nos mares extremo-orientais.
Nada transpira da documentação quinhentista sobre as actividades dos membros
da embaixada durante esse longo período de espera, mas é provável que se
tivessem dedicado à mercancia Embora a comitiva ficasse alojada num edifício
próprio, especialmente destinado às missões estrangeiras, as despesas da estada
corriam por conta dos portugueses, como expressamente exigira Fernão
Peres. Anos mais tarde, um dos companheiros de Tomé Pires informaria que
tinham ficado com o embaixador, em Cantão, ‘Duarte
Fernandez, criado de Dom Felipe, Francisco de Budoya, criado da senhora commandadeyra,
e Christovão d'Almeida, criado de Christovão de Távora, Pero de Freitas e Jorge
Alvarez’, para além de ‘Christovão
Vieira, e doze moços servidores, cinquo iurubaças’.
Tomé Pires e os seus companheiros partiram de Cantão em
direcção à capital chinesa, a 23 de Janeiro de 1520, quase três anos depois de
desembarcarem pela primeira vez naquele porto chinês. A embaixada largou da grande
metrópole meridional a bordo de três embarcações semelhantes a fustas, movidas
a remo, que estavam cobertas com toldos e hasteavam bandeiras imperiais. O
interior da China era sulcado por numerosos rios amplamente navegáveis, para
além de existir uma densa rede de canais, metaforicamente designados por Grande Canal, que permitiam a realização
de longas viagens fluviais através de quase todo o império. Graças a este
sistema de comunicações, era possível efectuar, numa embarcação, grande parte
do trajecto entre Cantão e Pequim. Como escreveria mais tarde Cristóvão
Vieira, um dos membros da embaixada, toda a ‘pasajem e caminhos na terra da China hé em rios, porque toda a China hé
cortada dos rios’.
Deste modo, a missão portuguesa apenas teve de desembarcar em Nanxiong,
para a travessia das Serras de Meilin, a que Barros chama ‘Malenxam’, que se
estendem na fronteira entre as províncias de Guangdong, Jiangxi e Fujian.
Daqui, Tomé Pires escreveu pela primeira vez a Simão de Andrade por um
mensageiro chinês, comunicando-lhe os sucessos da jornada. Apesar de se elevar
a cerca de três mil metros de altitude, a serra era provida de caminhos
calcetados, embora ‘muito ingremes e
trabalhosos’, que provocaram a admiração dos portugueses. Assim, foi
possível atingir Nanan, do outro lado deste maciço montanhoso, já na província
de Jiangxi, num curto espaço de tempo, utilizando ‘mulatos e asnos’, para aí retomar a rota fluvial. Um dos membros da
comitiva, Duarte Fernandes, que já ia doente, faleceu durante esta parte
do percurso.
Em Maio de 1520, depois de mais de três meses de caminho, Tomé Pires
e os seus companheiros chegavam a Nanquim, capital imperial do Sul. O imperador
Zhengde encontrava-se então nessa cidade, onde dirigia pessoalmente as
operações militares contra um príncipe que se revoltara. De Nanquim, os
portugueses escreveram pela segunda vez para Cantão, afirmando que se tinham
avistado com o imperador, notícias estas que chegaram às mãos de Simão
de Andrade antes da sua partida para Malaca. Dois documentos da época
afirmam de um modo explícito que Tomé Pires se encontrou pessoalmente
com Zhengde. Por um lado, uma carta de Martim Coutinho, que se baseava
em notícias recebidas em Cantão por Simão de Andrade, em 1520, refere
que Tomé
Pires fora extremamente bem recebido em Nanquim e que ‘folgaua
tanto elRey dos chyns com ele’, que ‘nam cavalgaua sem elle e a caça o
levava muytas vezes a lhe mostrar seus desemfadamentos’. Por outro
lado, uma carta de Cristóvão Vieira declara que os portugueses, naquela cidade,
viram ‘o rey em pessoa’, apesar de ser costume chinês o imperador ‘nunca
sair de seus aposentamentos’. Além disso, o companheiro do embaixador
acrescenta que Zhengde se avistara repetidamente com os nossos, chegando mesmo
a jogar ‘com Thomé Pirez às távolas’».
In Coordenação de Jorge Santos Alves, Portugal e a China, Conferências,
Séculos XVI-XIX, Fundação Oriente, Lisboa, 1997-1998, ISBN 972-9440-92-1.
Cortesia da F. Oriente/JDACT