quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Problematizar a Sociedade. A desconhecida sociedade em que vivemos, que caminhos para a compreendermos? «Acreditar que, agentes económicos, são norteados pela busca da utilidade máxima, e disposição a um esforço mínimo não passa de construção artificial com base na ‘racionalidade’»

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«Apresenta-se-nos como constelação de estruturas, entidade colectiva que transcende a soma das partes de que se compõe. Assim sendo, fica definido o tema de uma ciência da sociedade, a sociologia. Esse tema é a apreensão da realidade social na sua totalidade, é o estudo cientificamente conduzido do que Marcel Mauss denominou de facto social total. Coloquemo-nos numa situação concreta. Ao mercado acorre um camponês que pretende adquirir trigo e tem leite para vender. Outros dos presentes pretendem igualmente adquirir trigo, mas dispõem de dinheiro, uns, outros vendem diferentes artigos. A análise económica abstrai-se das pessoas, considera de um lado as ofertas - leite, trigo, ovos, panos, por exemplo, e de outro lado a procura de cada um dos bens; joga com as quantidades oferecidas e pretendidas, com as disponibilidades monetárias de compradores e vendedores. Com base nestes dados, traçam-se as curvas de indiferença, pelas quais se determinam os preços das mercadorias. Dir-se-ia estarmos numa esfera ou área estritamente demarcada, a esfera do económico. Na realidade não é bem assim. Compradores de trigo, vendedores de leite não são autómatos, cuja conduta se carrila exclusivamente para estes actos, são seres humanos de vida complexa, cada qual habituado a um sistema alimentar, com as suas preferências e necessidades, com família a sustentar, ou que exercem a mercancia e vêm de longes terras. No seu comportamento podem até interferir tabus religiosos ou pressões das circunstâncias. Acreditar que, agentes económicos, são norteados pela busca da utilidade máxima, e disposição a um esforço mínimo não passa de construção artificial com base na racionalidade da conduta (entendida essa racionalidade num sentido específico); ora as condutas podem ser, são frequentemente, irracionais, se medidas por esse critério. Se queremos compreender a fundo esse desenrolar de actos, na aparência estritamente económicos, temos de não nos contentar com o guignol de marionetes que encarnam abstracções e de animar a cena com homens de carne e osso, moldados desde a infância por tradições, executando ritos segundo um sistema de crenças, acreditando em valores, marcados por símbolos, ritmados por hábitos, abalados por emoções, conformando-se com padrões de atitudes colectivas. Há a posição social, com o fausto dos de mor condição no vestuário e na mesa, ostentando as carruagens, nomeados pelas esplendorosas recepções; ou os burgueses de trajes escuros e despesas contadas.
Mas também está em jogo o regime jurídico da propriedade, as normas a que obedecem as trocas, eventualmente a organização de empresas e a mentalidade empresarial. Porque não são actos sempre individuais, podem interferir organizações, por exemplo, cooperativas de consumo ou cartéis de vendedores. Nos simples actos de compra e venda está implicada toda a complexidade da vida psíquica e da vida social. Cada facto remete-nos para uma teia de circunstâncias, determinações, consequências cuja avaliação retrocede a orientar a escolha e os cálculos de que se rodeia. É pois de factos sociais totais, com a sua multiplicidade de facetas, tal como os entendia Marcel Mauss, que se trata». In Vitorino Magalhães Godinho, Problematizar a Sociedade, Quetzal Editores, 2011, ISBN 978-972-564-946-6.

Cortesia de Quetzal Editores/JDACT