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O Livro do Rei.
«É um dedilhar melancólico, as notas arrumadas em acordes tristes, fúnebres e por isso premonitórios que ainda ouço por vezes de noite. Não são os gritos dos meus soldados, que estes já se confundem com os de outros homens de outras batalhas. Estávamos algures entre Cales e Tânger, no dia 7 de Julho de 1578. O vento era próspero permitindo que os navios seguissem muito chegados de velas desfraldadas. De longe pareciam uma cidade flutuante... Os sobreviventes recuperados da Atlântida. Não, éramos apenas os perdidos, mas ainda não o sabíamos, pois as trombetas, pífaros e tambores que tocavam de toda a parte toldavam-nos os pensamentos, assim como o ar quente e pesado. De proa apontada para a costa da Berbéria, a cadência das ondas repetitiva ameaçava quebrar o bom humor dos homens assaltados pela monotonia. Pensei em pedir ao meu músico, Domingos Madeira, que cantasse para animar a tripulação e, se da boca das crianças sai sempre a verdade, da dos poetas também, mas num e noutro caso nunca reconhecemos a voz do profeta. Se não, atentai na moda que o meu músico me cantou quando lho pedi:
- «Ayer era rey de España, hoy no lo soy de una villa; ayer villas y castillos, hoy ninguno poseía: ayer tenía criados y gente que me servia, hoy no tengo ni una almena que pueda decir que es mía. Desdichada fue la hora desdichado fue aquel dia en que nací y heredé la tan grande señoría, pues lo había de perder todo junto y en un día! Oh muerte!, por qué no vienes y llevas esta alrna mía de aqueste cuerpo mezquino, pues se te agradecería?». Música de uma lenda sobre D. Rodrigo, o último rei dos Godos, segundo o frade Bernardo da Cruz, Chronica D’el-rei D. Sebastião.
E ainda dedilhado nos gemidos tristes de uma guitarra, que pior agouro poderia eu querer? E acaso haveis reparado que era em Castelhano que ele cantava?
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Não haveria profeta capaz de me demover se nem mesmo a Deus eu dera atenção com todos os sinais que Ele me enviara. «Ayer era rey de España, hoy no lo soy de una villa», cantava-me Domingos Madeira, e até poderia ter sido: «Hoy soy rey de Portugal, y in un mes no lo serié de una villa». E o efeito em mim teria sido o mesmo: nenhum.
O que chamaríeis a um homem que, apesar de todos os conselhos, todas as vozes contra, todos os indícios desfavoráveis, permanece na sua ideia? Teimoso? Voluntarioso? Mimado, por certo? Louco? Com certeza. E afinal não morreu louca a minha bisavó ganhando para a posteridade esse cognome: Joana, a Louca? O meu primo D. Carlos também morrera insano. A loucura estar-me-ia no sangue, pensareis. Estais correcto, mas não mais do que no vosso, pois nunca tivésteis vós um sonho que quisésseis perseguir para além de tudo? Por certo. Dir-me-eis que eu era rei, que deveria ter pensado no meu reino primeiro. Tendes razão. Mas antes de ser rei, nasci constituído pela mesma essência que compõe o vosso corpo, a mesma matéria frágil e quebradiça que ergue o nosso esqueleto e a idêntica substância etérea que o faz caminhar: os sonhos.
Mas porquê fixar-me nos meus familiares loucos, se os tenho bravos também: Carlos V de Espanha, Maximiliano I de Áustria, Filipe, o Atrevido, João, Sem Medo, Carlos, o Temerário. E que maravilhosos cognomes lhes deram! Os inteligentes: D. João II, o Príncipe Perfeito, e D. Manuel, o Venturoso. E ainda os tenho santos: Humberto III, o Santo Saboiano e Luís IX de França, São Luís. Que herança mais dignificante me corria nas veias e fazia o meu sangue revolver-se de puro orgulho. Quantos mais homens no mundo, de ontem, de hoje ou de quando quiserdes, tiveram tanto somatório de glórias dentro de si? Só eu!... Pensando melhor, o meu primo Carlos de Espanha também, mas esse era louco.
Cortesia de saidadeemergencia
Os meus erros, infelizmente, serão mais notados do que os vossos, e no entanto, disponho do mesmo conhecimento do futuro que vós, a mesma incerteza perante o mundo que vós. Nasci homem como vós. Enfim, eu e vós somos iguais, mas ainda assim esperáveis mais de mim. Eu também!
Não julgueis que quero deste modo que me desculpeis. As culpas que carrego, o peso que sinto nos ombros é grande, mas só meu. Culpas que ninguém conhece, que vos contarei e ainda assim ireis duvidar. Não vos censuro, a alma humana é mesmo assim.
Como escreveu Camões, o poeta, e por isso, como vimos também, profeta, porque um e outro se confundem, já que na rima daqueles nascem inesperadas verdades:
«E lá vos têm lugar no fim da idade,
No Templo da suprema eternidade»
Ele estava certo, que na altura pensei que seria por motivos diferentes. Muitas culpas me atribuíram, mais me hão-de dar ao longo dos tempos, sempre... Mas foram elas que me deram um lugar eterno na suprema eternidade. Nada mais do que culpas. Culpas na minha consciência e culpas na memória eterna de um povo. E por elas que me conhecem. São elas que me sustentam.
Culpais-me do domínio espanhol, não vos tiro a razão, mas pelo menos atrasei-o por mais de vinte anos. Achais pouco? Eu também. Mas ainda assim dai-me esse valor, por favor. Sem mim o domínio espanhol era certo, comigo foi-o também, mas eu dei-vos esperança para além da minha vida. Achais pouco de novo? Eu também. Queria ter-vos dado o mundo, mas é a esperança que sustenta um povo.
«Desdichada fue la hora, desdichado fue aquel dia en que naci», cantava Domingos. Então comecemos por aí, pelo dia em que tudo se começou a perder, o dia em que a independência de um reino repousava intranquila nos gritos de uma parturiente, o dia em que nasci». In Sónia Louro, A Vida Secreta de Dom Sebastião, Saída de Emergência 2008, ISBN 978-989-637-065-7.
Cortesia de Saída de Emergência/JDACT