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As Navegações e a Universidade
«Tentar perceber a influência dos centros eruditos, nomeadamente da Universidade, nos Descobrimentos tornou-se um tema recorrente na historiografia. Nem sempre abordado de forma correcta. Nem sempre tratado com a devida isenção científica. E quando se procura dar a entender que a Universidade ofereceu formas e métodos para a resolução dos problemas relacionados com as navegações, que assaltaram os oceanos ao longo dos séculos XV e XVI, está-se a cair numa tentativa, muito pretendida, e assaz sugestiva, de que Universidade e Descobrimentos andaram de mãos dadas. O que não deixa de ser uma conclusão algo precipitada.
A corrente que defende ter existido em Sagres, no tempo do Infante D. Henrique, uma «Escola Náutica» povoada de cartógrafos, cosmógrafos, matemáticos e outros cientistas também afirma, numa toada similar, que o Infante não teve outro propósito senão o de fomentar os estudos universitários, quando doou umas casas à Universidade de Lisboa, em 1431, a troco da reforma dos seus estudos, tendo em vista a formação dos navegadores. A reforma da Universidade a expensas do terceiro filho de D. João I tem degenerado, portanto, em equívocos. Ora, depois de uma análise mais cuidada aos factos, verifica-se que ironicamente a Universidade se manteve arredada dos meios náuticos.
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Uma das provas mais incisivas não deixa de ser o aparecimento de um único registo (ano de 1437) na docência da Matemática, durante todo século XV. O que é bem revelador da importância que se dava, dentro das instituições de ensino superior, a matérias susceptíveis de serem utilizadas na náutica. Acrescente-se, que o próprio Infante D. Henrique se interessou pela cadeira de teologia, provendo-a de um rendimento anual, circunstância muitas vezes omitida.
Convém, ainda, sublinhar que as explorações oceânicas portuguesas, num primeiro momento, isto é, durante os primeiros decénios do século XV, importam e adaptam a náutica em uso no Mediterrâneo. Nessa «arte de navegar» não eram necessários grandes apetrechos técnicos. A navegação era feita com recurso à agulha de marear, à carta portulano, à sonda (instrumentos há muito conhecidos) e, sobretudo, à sabedoria prática do piloto. Os centros académicos nada tinham a ditar a este tipo de navegação que, numa fase inicial, prestou excelentes serviços à marinha portuguesa. Quando, no decorrer da segunda metade do século XV, a Astronomia começou a ter um papel preponderante na náutica, para cálculo de posições geográficas através da altura meridiana do sol e de outros astros, foram os astrólogos, na sua grande maioria judeus, que trabalharam afincadamente nas observações astronómicas, na elaboração dos regimentos e na tradução de alguns textos, úteis à marinharia. Mais uma vez, como se constata, a Universidade não interveio. Nem era crível que o fizesse.
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Com efeito, problemas de vária ordem assolaram as corporações académicas, um pouco por toda a Europa, a partir de finais do século XIV. Um dos aspectos marcantes dessa nova realidade emergente foi o lancinante divórcio, que se verificou, entre a cultura universitária e a sociedade em geral. Os saberes da «periferia», ou seja, os saberes que circulavam entre os grupos sociais mais afectos à pratica das artes mecânicas e da técnica, artesãos, construtores de fortalezas, relojoeiros, construtores navais, pilotos, polidores de lentes..., ganharam preponderância, e reconhecimento da sua utilidade, diante dos saberes do «centro», alojados nas instâncias académicas. Na verdade, as Universidades vão perdendo, aos poucos, o monopólio das discussões «científicas»; ainda que alguns centros como Salamanca, Oxford ou Paris sejam palco de violentas disputas filosóficas e intelectuais. Entretanto, muitos professores e mestres reputados preferem ensinar e trabalhar fora dos seus muros e contestam abertamente o tipo de escoliose em que mergulharam os estudos universitários. No início do «Mundo Moderno», as Universidades adormecem em formas de aprendizagem e ensino já esgotadas. Resistem à novidade, à inovação intelectual, à modernidade filosófica e científica. Podemos, então, equacionar os seus préstimos.
Que contributos poderiam oferecer, às navegações oceânicas, instituições pedagógicas em agonia, que sobreviviam à sombra da autoridade doutrinária dos autores antigos (contra os quais lutarão essas mesmas navegações) e do vazio dialéctico? Que contributos poderiam oferecer sistemas de ensino que se desgarravam da realidade? Que contributo se poderia esperar de «escolas» que se isolavam e resistiam às reformas, permitindo que a iniciativa intelectual lhes fugisse das mãos?
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A inovação intelectual tornou-se menos dramática nos centros académicos mais jovens como Wittenberg (1502), Alcalá (1508) ou Leiden (1508), onde já imperava a força do Humanismo, mas não foi suficiente para impedir que os saberes da «periferia», alicerçados no saber técnico, continuassem a ter maior capacidade de resposta para os novos desafios que a sociedade lançava, por via da modificação do seu modo de produção e da sua própria estrutura. O panorama universitário em Portugal não diferia muito do Europeu. A Universidade possui, aproximadamente, cento e vinte cinco anos de existência quando as viagens dos Descobrimentos têm início. D. Dinis conseguira, no ano de 1290, instituir o «Estudo Geral» em Lisboa. Contudo, nos reinados seguintes assiste-se à diletância, instável, do «Estudo» entre Lisboa e Coimbra, com a sua reforma a ser continuamente adiada. Nos reinados de D. Manuel I e D. João III opta-se claramente pelo sistema de bolsas de estudo, através da formação de quadros noutros países. Duas iniciativas tomadas durante o século XVI são no entanto dignas de registo:
- a criação, por D. Manuel, de uma cadeira universitária de Astronomia regida primeiro por Mestre Filipe (1513) e depois por Mestre Tomás Torres (1521), ambos médicos sefarditas;
- a decisão reformadora de D. João III em transferir para Coimbra a Universidade (1536), convidando para o efeito professores estrangeiros.
A cadeira de Astronomia instituída por D. Manuel não era frequentada pelos marinheiros que sulcavam os oceanos, porque através do «Regimento do Cosmógrafo–mor» temos notícia de, em meados do século XVI, funcionar uma «aula de Matemática», ministrada pelo cosmógrafo–mor. A «aula», que era destinada a pilotos, sota-pilotos, cartógrafos e outros homens ligados à empresa marítima, tinha lugar nos «armazéns da Índia». No Colégio jesuíta de Santo Antão, de 1590 a 1759, funcionou, igualmente, uma «aula da Esfera», aberta ao exterior, cujos contornos didácticos também passavam pelos elementos de cosmografia e da arte náutica.
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De entre os cosmógrafos–mor, que se sucederam no cargo, a não ser Pedro Nunes, nenhum esteve ligado estritamente ao meio universitário. De facto, Pedro Nunes (1502-1578), um matemático de projecção internacional, professor catedrático na Universidade, conviveu de perto com os homens do mar; não querendo isso dizer que comungasse dos seus pontos de vista, pelo contrário, com excepção de D. João de Castro com quem manteve bons contactos, foram inúmeras as vezes em que o matemático e os marinheiros não estiveram de acordo. Sintoma claro do difícil relacionamento entre as entidades académicas e o meio naval. Outros homens com formação universitária também estiveram ligados, por formas diversas, de modo esporádico ou indirecto, às navegações quatrocentistas e quinhentistas. Vale a pena citar alguns nomes:
- Diego Ortiz de Vilhegas, que fora professor na Universidade de Salamanca, célebre Bispo de Ceuta e Tânger, é conselheiro de D. João II e D. Manuel I para assuntos cosmográficos;
- Francisco Manuel de Melo (1496? -1536), formado na Universidade de Paris, também intervém em alguns pareceres sobre as navegações;
- Garcia da Orta (1500-1568), boticário, que com base na nova realidade proporcionada pelas navegações lança nova luz sobre a farmacopeia.
Caso diferente foi o de André de Avelar que, atento ao fenómeno das navegações, dá uma aula de cosmografia na Universidade de Coimbra em fins do século XVI; caso único, pois a verdade é que ninguém lhe seguiu o exemplo.
De uma forma geral, pode-se concluir que navegações e Universidade estiveram em dois campos completamente distintos. A provar essa distância de posições, estão os testemunhos, usualmente denominados de «literatura de viagens», em forma de roteiros, livros de marinharia, descrições antropológicas e geográficas, diários de bordo, guias náuticos e outros documentos, escritos na sua esmagadora maioria por indivíduos que não tinham formação universitária, e onde é bem patente uma visão do Mundo anunciadora dos novos tempos». In Carlos Manuel Valentim, Instituto Camões.
Cortesia de Instituto Camões/JDACT