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«De há muito tenho defendido a necessidade de se revelar, estudar e divulgar a «face oculta» da obra de autores consagrados, seja ela consequência de puro esquecimento ou atraso na divulgação, de abandono da criação, ou mesmo, em certos casos, de repúdio e insatisfação do próprio autor. Mesmo incompletos, imaturos ou de menor qualidade, os inéditos devem ser conhecidos: em nada roubam a glória da restante obra:
- e projectam sobre ela uma luz crítica, por vezes extremamente reveladora e explicativa. Isto, além de se encontrarem, nos inéditos, momentos altos de pura criação.
O Sonho duma Véspera de Exame, escrita em 1935, representada no ano seguinte por alunos do Liceu de Portalegre e posteriormente reposta, mas só agora publicada; e as 34 páginas manuscritas de «Sou um Homem Moral», cujo «primeiro rascunho, começado em 24/6/940» segundo a nota de rosto, ficaria por aí mesmo. Ora, se enquadrarmos o Sonho no contexto da dramaturgia de Régio, verificamos a prioridade cronológica quase absoluta deste singelo exercício teatral.
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Toda esta laboriosa tábua cronológica serve para situar a questão temática e estilística do Sonho duma Véspera de Exame. E nem se diga que essas qualificações, o tema e o estilo, são avantajadas ou desproporcionadas face à circunstância singela da peça. Penso que não é assim:
- este Sonho, aliás elaborado ao longo de dois meses (Novembro/Dezembro de 35) contém já os sinais implícitos da portentosa, vasta e densa dramaturgia regiana.
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Em primeiro lugar, certa ambivalência entre o real e o onírico, ou, termos mais literários, entre o realismo de base e a projecção simbolizante. O quadro inicial da discussão dos primos estudantes, corresponde ao diálogo e à mentalidade da juventude estudantil provinciana dos anos 30, que o Dr. Reis Pereira tão bem conhecia:
- O tom algo doutoral e «paternal» (expressão de uma nota de cena) de Luís e o estovamento da «cabeça de vento, e espirra-canivetes», (e como são datadas estas expressões) de João, revelam o convívio profissional com a juventude.
Aliás, a forma como é referido o «épico», e a ênfase dada aos valores culturais e patrióticos d'Os Lusíadas, definem uma situação ideológica adequada à época, mesmo que os valores respectivos, qualidade do poema, amor à Pátria, sejam de sempre.
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Também notável, nesse aspecto, a identificação dos três «juízes» com a «maldita Inquisição, vestidos com o hábito e capuz dos inquisidores, mas em vermelho»; aliás, João reconhece-os:
- «os senhores são uns senhores que estão numa estampa dum livro do paizinho, e que castigaram as pessoas queimando-lhes os pés!» Eles não negam: mas indignam-se quando o pobre João lhes chama carrascos!
Ironia, e não pouca, aparece na caracterização das disciplinas escolares que o João ignora:
- a Ortografia,
- a Aritmética e seus respectivos filhos e parentes,
- os acentos, os números e os sinais da pontuação.
Mas já agora, repare-se na subtileza com que o exigente professor de Português, que era também, nas longas noites da velha casa amarela, um dos maiores poetas do seu tempo, caracteriza justamente os sinais de pontuação:
- «as gentilíssimas reticências, o fino ponto de exclamação, a vírgula tão galante e tão prestável …».
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Claro que a ironia continua presente, e reafirma-se na grandiloquência ingénua do artigo do Luís sobre a ciência, a transformação alegórica, sem embargo de que a apologia final, um pouco ao jeito de quadro de revista, surge profundamente datada.
Mas aí se contém, uma adequação ao público infanto-juvenil inicial, a didáctica tão cara ao Dr. Reis Pereira e ao poeta José Régio:
- Na verdade, com as limitações conjunturais óbvias, a peça como que introduz toda a temática da análise crítica, ideológica, existencial, de Régio;
- e mais, fá-lo um sistema de confronto bem-mal, positivo-negativo, Deus-Diabo, que, guardadas as proporções, se mantém constante em toda a vasta e densa criação.
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Simbolistas serão o Jacob, o final d’A Salvação do Mundo (1954) e El-Rei Sebastião (1949). Mas mais próximos de um realismo, poético embora, serão a admirável Benilde ou o 2º acto (sobretudo) d'A Salvação; serão, em termos mais convencionais e mais pesados, as Três Máscaras e o que se conhece de Sou um Homem Moral, textos aliás quase contemporâneos e muito semelhantes. E caminhando claramente para a modernidade, refira-se O Meu Caso e Mário ou eu Próprio, O Outro, ambos publicados em 1957, últimos textos teatrais conhecidos de Régio.
A publicação deste Sonho duma Véspera de Exame corresponde à tal necessidade de divulgação dos inéditos: aliás, tudo o que José Régio criou, assume altíssima qualidade.
E a peça, escrita a pensar em alunos de liceu, não desmerece a obra geral, escrita a pensar na cultura profunda da língua portuguesa». In Duarte Ivo Cruz, José Régio, Sonho duma Véspera de Exame, Publicações da Casa de José Régio, CM de Vila do Conde, Tipografia Minerva, Novembro de 1989, Depósito Legal nº 32722/79.
Cortesia Casa Museu José Régio/CM de Vila do Conde/JDACT