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segunda-feira, 17 de abril de 2017

Estado da Questão. Revistas Filosóficas em Portugal. Pedro Calafate. «Na mesma linha de valorização da filosofia escolástica encontramos a revista Filosofia (1954-1961), publicação trimestral editada pelo Centro de Estudos Escolásticos»

Cortesia de wikipedia jdact

«(…) Assume especial relevo o aparecimento, em 1925, da nova série da Brotéria (Fé-Ciências-Letras, posteriormente com o subtítulo Cultura e Informação), e da Revista Portuguesa de Filosofia (1945 até à actualidade). Ambos os títulos reflectem o esforço cultural e filosófico da Companhia de Jesus no panorama português contemporâneo. Nelas se identifica a permanente abertura e discussão das grandes questões do pensamento contemporâneo, à luz da orientação fundamental de cada uma destas publicações: o personalismo cristão. Tanto a Brotéria como a R.P.F. nasceram a partir de um comum projecto pedagógico, sustentado pela concepção Inaciana da filosofia, a primeira como órgão dos jesuítas portugueses, a segunda a partir da actividade docente do Instituto de Filosofia Beato Miguel Carvalho, embrião da futura Faculdade Pontifícia (Braga 1947).
A Brotéria começou por protagonizar a luta de minorias intelectuais católicas, com destaque para Domingos Gomes Santos, João Pereira Gomes e António Banha Andrade, num esforço de valorização da actividade histórico-cultural da Companhia e, por ela, de revisão da imagem da história pátria, enegrecida pela tese da decadência veiculada pelos manifestos pombalinos e, já neste século, por António Sérgio e Hernâni Cidade. Como suporte fundante deste propósito encontrava-se a valorização da metafísica e mais propriamente da designada Segunda Escolástica peninsular, protagonizada pelos Conimbricenses e pelos mestres da Universidade de Évora. Mais tarde, já sob a direcção do padre Manuel Antunes e até ao momento presente (1992), afirmou-se como tribuna de discussão e crítica dos grandes temas do pensamento contemporâneo, à luz do ideário permanente de um humanismo integral e do conceito global e cristão de homem.
As mesmas directrizes assistem à R.P.F., correspondendo, desde a sua fundação em 1945, ao propósito de apreciação dos grandes problemas humanos da vida presente, à luz da metafísica, que aponta ao espírito as razões últimas dos seres em sua essência, finalidades e condicionalismo, anunciando [...] a mensagem pacífica da Neo-Escolástica, ou seja, a escolástica renovada nas suas grandes correntes, tomista, escotista e suareziana [...]. É esta a linha de orientação permanente da R.P.F. a que poderíamos juntar, o propósito de constante e permanente actualização e a valorização do pensamento português como directrizes fundamentais. Está fora dos nossos propósitos a inventariação da longa lista de colaboradores e estudos de relevância para a filosofia em Portugal. Esse trabalho está feito, para os anos de 1945 a 1974, com a publicação do volume de índices dos trinta volumes então publicados, com índice alfabético de autores e índice sistemático. Importa, no entanto, chamar a atenção para os números especiais que constituem marcos dos estudos de filosofia, abarcando, entre outros, a obra de Pedro Hispano, Francisco Sanches, Pedro Fonseca, Leonardo Coimbra, Teixeira Pascoais, Inácio Monteiro, Platão, Santo Agostinho, Séneca, Escoto, Cusa, Teilhard Chardin, Kant, Hegel e Leonardo Coimbra. Não devemos esquecer ainda a publicação das actas do primeiro congresso nacional de Filosofia (1955), as actas do primeiro congresso luso-brasileiro de Filosofia (1982), as actas do colóquio luso-austríaco sobre Ludwig Wittgenstein (1982) e as actas do II colóquio português de fenomenologia.
Na mesma linha de valorização da filosofia escolástica encontramos a revista Filosofia (1954-1961), publicação trimestral editada pelo Centro de Estudos Escolásticos. Nascida em torno de um grupo de alunos da Faculdade de Letras de Lisboa, contou com a direcção de António Banha Andrade e Maria Manuela Saraiva. Foi intenção dos seus fundadores dar continuidade à tradição filosófica interrompida pela reforma pombalina, conservando, por isso, um fundo escolástico, de feição agostiniana e tomista. Nela colaboraram Diamantino Martins, A. Miranda Barbosa, João Ferreira, Júlio Fragata, Alexandre Fradique Morujão e António Banha Andrade.
A década de quarenta foi particularmente fecunda na criação de revistas com relevo no panorama dos nossos estudos filosóficos, pois é nesse período que se dá o aparecimento de títulos como Atlântico (Lisboa e Rio de Janeiro, 1942 e seguintes) dirigida por António Feiro e Lourival Fontes e com colaboração filosófica de Álvaro Ribeiro, Eudoro Sousa, Delfim Santos e Vieira Almeida; Litoral (Lisboa, 1944-1945), dirigida por Carlos Queiroz, com colaboração filosófica de Álvaro Ribeiro, José Marinho, Delfim Santos, Eudoro Sousa, António José Brandão e Augusto Saraiva; Rumo (Lisboa, 1946), dirigida por Mário Albuquerque, com colaboração filosófica de Delfim Santos, Cabral Moncada, António José Brandão, Eudoro Sousa, Afonso Botelho, Délio Nobre Santos e Luis Ribeiro Soares; Cidade Nova (Coimbra, 1947 e seguintes), dirigida por Carlos Amado e com colaboração filosófica de Álvaro Ribeiro, Afonso Botelho, António Dias Magalhães e António José Brandão.
Sublinhe-se finalmente que ainda nos anos quarenta surge o Boletim do Ministério da Justiça (Lisboa, 1947 e seguintes), o qual, nos primeiros anos da sua existência, inclui preciosa colaboração filosófica, com destaque para a filosofia do direito, em estudos de Luis Cabral Moncada, António José Brandão, Carlos Cossio, Giorgio del Vecchio, António Truyol y Serra, Delfim Santos, Luis Legaz y Lacambra, Miguel Reale, António Silva Leal e António Braz Teixeira.  Em 1951 surge a Revista Filosófica, editada em Coimbra até 1959, com direcção de Joaquim Carvalho. O prestígio de Joaquim Carvalho esteve ainda na base da publicação da Miscelânea de Estudos a Joaquim Carvalho (Figueira da Foz, 1959-1963), publicação de incidência estritamente filosófica, notando-se especial incidência na análise da filosofia alemã». In Pedro Calafate, Estado da Questão, Revistas Filosóficas em Portugal, Philosophia 2, Lisboa, 1993.

Cortesia de Philosophica/JDACT

Estado da Questão. Revistas Filosóficas em Portugal. Pedro Calafate. «O início da década de quarenta assiste ao aparecimento da revista coimbrã “Vértice”, que corporizará um espaço de opinião em clara oposição à política cultural vigente durante o Estado Novo»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Cinco anos após a fundação da Biblos surge no nosso panorama cultural a Princípio (Porto 1930), dirigida pelo filósofo e pedagogo Álvaro Ribeiro, impulsionador do movimento da filosofia portuguesa, onde, apesar da sua efémera duração, encontramos colaboração filosófica assinada por José Marinho e Delfim Santos. Esta mesma década de 30 conhecerá a edição de mais uma revista universitária de carácter interdepartamental, destinada também ela a grande projecção futura, a Revista da Faculdade de Letras (Lisboa, 1933 até à actualidade), publicada pela Faculdade de Letras de Lisboa, que nos oferece um valioso testemunho da actividade filosófica no âmbito escolar, sobretudo a partir de 1957, ano que marca a independência do 6 Grupo (Filosofia) e, consequentemente, a autonomia curricular da Filosofia, suprimida desde a reforma de 1926. O estudo da colaboração de interesse filosófico veiculado pelas páginas da Revista da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, até ao ano de 1983, foi exaustivamente elaborado por Francisco Gama Caeiro, em artigo intitulado Da Filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa, editado no número comemorativo dos cinquenta anos da sua publicação (Lisboa, 1983), pelo que, sobre o período referido, mais não cumpre dizer. Assim, tomando como referência os anos posteriores a 83, a Filosofia continuou a encontrar nas páginas da revista um espaço relevante com colaboração, no âmbito da lógica, de Manuel Santos Lourenço, sobre o conceito de identidade na teoria clássica da dedução; de Cristina Beckert Assunção e Carlos João Correia sobre a hermenêutica contemporânea; de Francisco Gama Caeiro e Joaquim Cerqueira Gonçalves no âmbito da mesa redonda sobre Literatura e Hermenêutica, publicada no n° 12, (Lisboa 1989). de José Barata Moura sobre as condições de possibilidade da História das Ideias como disciplina do saber, de Leonel Ribeiro Santos sobre Descartes e a concepção moderna da analogia e de Adriana Veríssimo Serrão sobre Feuerbach e a filosofia do Renascimento.
Registemos ainda, nos anos trinta, o aparecimento de uma revista de dominância literária, mas que não deixou de evidenciar colaboração filosófica de interesse. Falamos da Revista de Portugal (Coimbra 1937), dirigida por Vitorino Nemésio, que reedita assim o título da publicação dirigida por Eça de Queiroz na centúria anterior. Aí publicou Delfim Santos o seu estudo recentemente reeditado sobre Heidegger e Holderlin, e Magalhães Vilhena uma primeira abordagem à sua futura obra sobre a história da ideia de progresso. Para além dos dois autores citados, regista ainda a colaboração de António Sérgio, com uma análise dos sonetos de Antero, de José Marinho com um estudo sobre o juízo tácito e de Vieira Almeida sobre a veritas latina.
O início da década de quarenta assiste ao aparecimento da revista coimbrã Vértice (1942 até à actualidade), que corporizará um espaço de opinião em clara oposição à política cultural vigente durante o Estado Novo, em áreas próximas das correntes marxistas. Foi nas suas páginas que se desenrolou a interessante polémica entre António Sérgio e Bento Caraça sobre a natureza e o valor da ciência, nos anos 1945-46. De registar a colaboração de autores como Vieira Almeida, Egídio Namorado, Alberto Ferreira, José Percegueiro, Eduardo Lourenço, José Barata Moura, Adriana Veríssimo Serrão e Eduardo Chitas. Um ano mais tarde saiu a público a Gazeta de Filosofia (1943-44), revista de existência efémera (apenas três números), mas que contou com a colaboração, entre outros, de Vieira Almeida e de V. Magalhães Vilhena». In Pedro Calafate, Estado da Questão, Revistas Filosóficas em Portugal, Philosophia 2, Lisboa, 1993.

Cortesia de Philosophica/JDACT

quinta-feira, 13 de abril de 2017

Contos Proibidos. Rui Mateus. «É verdade que [o PC] foi um dos seus motores essenciais, mas não foi o único... De facto, a maior parte dos aderentes não tinha posição ideológica definida»

jdact

Os anos da inocência, 1944-1974
«(…) Para ele, o modelo de verdadeiro socialismo democrático, que se propunha aplicar em Portugal, deveria ser muito diferente daquele conduzido pela família social-democrata, a que pediria adesão um mês depois, e passava por uma sociedade na qual os meios de produção [seriam] colectivizados ao serviço de todos, ao mesmo tempo que os poderes de decisão [seriam] democraticamente controlados pela base. Vivíamos numa época em que os primeiros fundadores do movimento socialista contemporâneo português, com relevo para Mário Soares, defendiam um papel subalterno em relação ao Partido Comunista. O que em grande parte só não acontecia por razões que, penso, se prendiam mais com a arrogância e miopia de Álvaro Cunhal e com a sua, já então, gerontocrática direcção política, do que com a oposição lúcida dos percursores do PS. Nas três décadas que separam a ditadura militar de 1926 da candidatura do general Humberto Delgado, em 1958, a oposição portuguesa seria exclusivamente dominada pelos comunistas, sobretudo após a reorganização do Partido Comunista Português liderada por Álvaro Cunhal, em 1941. O total afundamento dos socialistas portugueses após a implantação da República, e a ausência de outras alternativas democráticas credíveis, impediriam que a vitória dos Aliados na Segunda Grande Guerra jogasse a favor da implantação de um regime democrático em Portugal. Os grupos de oposição ao regime salazarista encontravam-se totalmente dispersos e destituídos de objectivos. As suas poucas iniciativas não encontrariam o menor eco junto dos portugueses e todos os contactos com forças democráticas internacionais permaneceriam interrompidos.
As organizações de oposição à ditadura, como Movimento de Unidade Nacional Anti Fascista (MUNAF) criado em 1943 e, depois, o Movimento de Unidade Democrática (MUD), eram impulsionados pelo Partido Comunista e não resistiriam à tentação de apressarem a queda da ditadura por métodos violentos ao mesmo tempo que, utilizando o nome de alguns democratas, aspiravam a uma vida legal que proclamava a mudança pela via eleitoral. Assim, o ex-ministro da 1ª República e prestigiado grão-mestre da maçonaria, general Norton de Matos, enquanto presidente do
MUNAF encabeçaria em Agosto de 1945 o falhado golpe de estado constituído por
oficiais fiéis ao Partido Comunista e reapareceria, em 1949, como candidato às eleições
presidenciais sob a bandeira da «Oposição Democrática Unificada». O MUD,
entretanto, tinha sido dissolvido no ano anterior, em 1948, após várias tentativas falhadas de golpes de estado e revoltas militares. O longo período de isolamento internacional dos socialistas e a impotência dos grupos da chamada oposição democrática para se autonomizarem em relação aos comunistas impediria os aliados de descortinarem no nosso país a existência de forças democráticas alternativas e o próprio MUD juvenil seria acusado alguns anos mais tarde de ser a emanação pura e simples do Partido Comunista.
A situação de marginalidade e de profundas contradições em que vivia a chamada oposição democrática seria exemplarmente tipificada por um dos seus dirigentes que garante poder afirmar, com conhecimento de causa, que [aquele movimento juvenil] não o foi, apesar de um número dos seus dirigentes estar ligado ao Partido Comunista. É verdade que [o PC] foi um dos seus motores essenciais, mas não foi o único... De facto, a maior parte dos aderentes não tinha posição ideológica definida e situava-se numa perspectiva unitária antifascista! É óbvio que, no limiar da guerra fria, entre o brilhante golpe estratégico de Salazar posicionando-se, aos olhos dos aliados vencedores, a Grã-Bretanha e os EUA, como um bastião da luta contra o comunismo e as afirmações do pequeno grupo de abencerragens, sem qualquer influência real no País de que a oposição a Salazar era constituída na sua maior parte por aderentes que não tinham posição ideológica definida e se situavam numa perspectiva unitária antifascista, era mais convincente a posição do matreiro ditador». In Rui Mateus, Contos Proibidos, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1996, ISBN 972-20-1316-5.

Cortesia de Dom Quixote/JDACT

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Contos Proibidos. Rui Mateus. «Existiam então relações com a IS de pura camaradagem [sem] nenhum compromisso nem nenhuma ligação orgânica»

jdact

Os anos da inocência, 1944-1974
«(…) Em Janeiro de 1970, Manuel Tito Morais esclarecia-me de que a ASP não é filiada na Internacional Socialista, havendo sérias reticências da parte de alguns companheiros nossos, e com razão, a filiarmo-nos numa organização que toma atitudes um pouco estranhas na política internacional. Contudo, apesar de não sermos filiados eles estão sempre dispostos a ajudar-nos e alguma coisa têm já feito para desmascaração do marcelismo, influindo até junto dos governos ocidentais. Evidentemente que isto que lhe digo é inteiramente confidencial e serve só para o informar da nossa posição... Mas para muitos outros, até 1969, a ASP tinha uma carga social democrata que não agradava a muitos sectores da esquerda [que] para ingressarem na organização de Mário Soares colocaram condições. Defendiam o marxismo como inspiração teórica predominante contra qualquer tentação social-democrata.
Em 1970 a Internacional Socialista examina as suas ligações à Acção Socialista Portuguesa, por pressão de alguns partidos com responsabilidades governamentais, entre os quais se conta o SPD, alarmados com a desproporção entre o discurso dos seus dirigentes e o exíguo apoio popular demonstrado pela CEUD. Por outro lado, Marcello Caetano, convencido das suas boas relações com a administração do Presidente Nixon, tenta convencer os outros parceiros europeus da NATO de que o seu regime irá evoluir progressivamente para uma democracia política. O relatório, de 8 de Março de 1971, da viagem que o então deputado à Assembleia Nacional, Manuel José Homem Mello, efectuara à RFA, a convite do governo alemão, enviado a Marcello Caetano, evidencia isso mesmo. Segundo este antigo caetanista, no encontro organizado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão com o director das relações internacionais do Partido Social-Democrata alemão, Hans Eberhard Dingels, este revelou imediatamente estar a par da situação portuguesa, referindo acreditar na honestidade de processos e no desejo de evoluir manifestado pelo presidente Marcello Caetano. Ainda segundo Homem Mello, Dingels aconselhara Mário Soares a moderar os ímpetos, afirmando-se partidário e admirador convicto da experiência política portuguesa em curso que, se viesse a falhar, só poderia ter como consequência a tragédia fascista ou a ditadura comunista.
Tudo indica que Caetano seria convencido pelos seus conselheiros de que os argumentos usados por Salazar em 1945 surtiriam efeito vinte e cinco anos depois entre os sociais-democratas do centro e norte da Europa, conhecidos como eram pelas suas fortes tradições anti-comunistas. Mas, acontece que apesar de ter encontrado alguma receptividade, como revela Homem Mello, a oposição à política colonial desenvolvida por fortíssimos lobbies norte-americanos e a posição dos governos sociais-democratas da Escandinávia, a juntar aos já mais do que evidentes avanços militares e diplomáticos dos movimentos de libertação em Moçambique e na Guiné, contribuiriam para impedir que a história se repetisse.
Nesse ano, após reunião realizada em Paris, no mês de Maio, para eleger a sua comissão directiva (seriam eleitos para a CD da ASP, Tito Morais, organização, Mário Soares, relações internacionais, Ramos Costa, tesouraria, Gil Martins, imprensa e Fernando Loureiro e Rui Mateus, juventude), a ASP decidiria fazer uma consulta aos seus parcos militantes sobre a clarificação exigida pela IS. Manuel Tito Morais, então o principal responsável pela organização, admite mesmo existir um problema com a Internacional Socialista. Existiam então relações com a IS de pura camaradagem [sem] nenhum compromisso nem nenhuma ligação orgânica. Mas, somos solicitados para esclarecer a nossa posição [não obstante as] muitas incógnitas no campo ideológico. Para Manuel Tito Morais a nossa adesão [implicaria] transformar a ASP em Partido, apesar de ele ter, então, as maiores dúvidas de que sejamos capazes de o fazer, considerando um partido a sério, que não seja uma mistificação. O então responsável pelas relações internacionais tinha uma posição semelhante, se bem que muito menos sincera, que a de Manuel Tito Morais. Era claramente influenciada pelos mitos anti-social-democratas do PCP e da esquerda francesa de então, camuflando as caraterísticas do burguês respeitável e do enfant gaté que era, não lhe satisfazendo nenhum dos modelos socialistas [então] em aplicação no mundo, uma vez que acusava as experiências para-socialistas dos sociais-democratas que, sozinhos ou através de coligações, conquistaram o poder em vários países da Europa Ocidental…, de falta de consequência e de vigor doutrinário que os conduziu quase sempre à situação de leais gestores do capitalismo». In Rui Mateus, Contos Proibidos, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1996, ISBN 972-20-1316-5.

Cortesia de Dom Quixote/JDACT

Contos Proibidos. Rui Mateus. «Em 1964, com Ramos Costa e Tito Morais no exílio, e os grupos de Lisboa, do Porto e de Coimbra, animados por homens como José Magalhães Godinho…»

jdact

Os anos da inocência, 1944-1974
«(…) A precursora do Partido Socialista não tinha qualquer passado histórico. Nascera na década de 60 um pouco com o quem regista uma patente por iniciativa de um grupo de conspiradores de operacionais na sua maioria ligados à Maçonaria, e de alguns teóricos influenciados pelo PCP, como foi o caso de Salgado Zenha e do próprio Vitorino Magalhães Godinho. A evolução teórica do movimento, mais de três décadas após a sua constituição, é assim essencialmente caracterizada mais por razões empíricas de conveniência dos seus operacionais do que pelas teses dos seus ideólogos ou pelos princípios doutrinários que emanam do socialismo democrático. Esta caracterização, que viria a ficar célebre quando o líder da oposição, Francisco Sá Carneiro, acusou o então primeiro-ministro Mário Soares de meter o socialismo na gaveta com a finalidade de se manter no poder através de uma coligação com o partido democrata-cristão, CDS, verifica-se frequentemente na prática seguida desde 1964. Seria mesmo motivo de algum desdém por parte dos sociais-democratas norte-europeus que consideravam verdadeiramente ridícula a constante necessidade de demarcação dos socialistas portugueses em relação à social-democracia, a cuja família queriam pertencer embora afirmassem ser socialistas democratas e não sociais-democratas. Era um maneirismo influenciado por François Mitterrand, que a Internacional Socialista considerava uma expressão de retórica e pura hipocrisia, com o objectivo de parecerem mais progressistas aos olhos do mundo. Era aliás um sintoma típico do Sul da Europa, que um proeminente político norte-americano, anos mais tarde,comentaria com ironia, em termos semelhantes aos de Sá Carneiro.
Mas não obstante a subtil distinção e a demarcação progressista dos seus principais dirigentes, a verdade é que a adesão dos socialistas portugueses à Internacional Socialista representa o ponto mais alto do movimento no período que antecedeu o 25 de Abril de 1974. Na história do PS, a sua filiação internacional sobressai destacadamente da manifesta pobreza do seu passado. O PS, sobrevivente apagado dos anos 30, que não resistiu, como organização autónoma, à repressão e clandestinidade, que no final da Segunda Grande Guerra era constituído apenas por um pequeno grupo de abencerragens, sem qualquer influência real no País.
Em 1964, com Ramos Costa e Tito Morais no exílio, e os grupos de Lisboa, do Porto e de Coimbra, animados por homens como José Magalhães Godinho, Gustavo Soromenho, Raul Rego, Salgado Zenha, José Ribeiro Santos, Catanho Menezes, António Macedo, Mário e Carlos Cal Brandão, Álvaro Monteiro, Costa Melo, Fernando Vale, António Arnaut, António Campos e mais uma escassa centena de esforçados militantes, espalhados pelo País, formou-se a Acção Socialista Portuguesa. Iniciaram-se então os primeiros contactos internacionais. Em 1969, na falsa primavera caetanista, a ASP dinamizou uma campanha eleitoral semilegal e completamente frustrante, a CEUD. Era apenas um embrião. Porém, em 1972, no Congresso de Viena, a ASP é admitida como partido membro na Internacional Socialista. De 1964 a 1972, e mesmo até 1974, só dois acontecimentos de relevo, ambos influenciados do exterior, teriam lugar na história do movimento: a entrada na Internacional Socialista em 1972 e a fundação do Partido Socialista em Bad Munstereifel, na República Federal da Alemanha, em 1973, sob os auspícios da Fundação Friedrich Ebert. Pelo meio só a frustrante dinamização da Comissão Eleitoral de Unidade Democrática em 1969. No entanto, esta filiação, quer pela ausência de suporte popular de movimentos de cariz socialista quer pela sua evidente falta de credenciais ideológicas, seria vital para a sobrevivência do Partido Socialista. À sua volta iriam desenrolar-se as principais e quase únicas actividades do movimento socialista português. Manuel Tito Morais e Francisco Ramos Costa seriam os elementos chave para o lançamento internacional quer da ASP quer do PS e foi por seu intermédio que Mário Soares veio a estabelecer as suas primeiras relações internacionais pelo menos na área da esquerda. Apesar dessa realidade, subsistia um complexo de inferioridade dos dirigentes socialistas em relação ao PC, que os levava a fazer declarações mais para agradar à esquerda festiva pequeno-burguesa e sem qualquer noção dos acontecimentos históricos em que participavam (Tony Benn (The End of an Era - Diaries 1980-1990, p. 108, Arrow Books, Londres, 1994, diria, após um encontro com Mário Soares em Lisboa, tê-lo achado, ao contrário do que esperara, um pobre vaidoso sem uma verdadeira noção dos acontecimentos históricos em que participava)». In Rui Mateus, Contos Proibidos, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1996, ISBN 972-20-1316-5.

Cortesia de Dom Quixote/JDACT

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

O Príncipe. Nicolau Maquiavel. «A vida havia-os separado. Vettori vive uma vida prestigiada, cortesã, despreocupada, lamentando apenas a ociosidade e o ter de autoconter-se na sua postura que, não fossem as conveniências»

jdact

Jamais houve homem menos maquiavélico do que Maquiavel. In Villari

Maquiavel, o prisioneiro do maquiavelismo
«(…) Para que os de Medici saibam que, nada o ligando aos conjurados, a execução destes não lhe afecta sequer a consciência, faz-lhes chegar às mãos aquele verso cínico: vadin in buona ora. Sofrido o cárcere, eis uma natureza que a privação da liberdade moldara e que se vai refinar agora, lançado ao desprezo, o ócio dando-lhe oportunidade, os áureos tempos antigos apontando-lhe o horizonte, o imaginário de grandeza passada tornando-o paradigma do cinismo na acção, a mofa uma forma de mentir com a verdade, de confundir o mal que aconselha com a maldade de que parece mero observador. Tudo surge a seu tempo. De homem de acção transforma-se em pensador, sendo a maioria dos seus escritos anteriores relatórios das actividades diplomáticas. Publicara, é certo, o que poderia passar por poesia pura, as suas primeiras Decenais, sob o título de Nicolai Maclavelli florentini compendium rerum decennio in Italia gestarum, 183 tercetos escritos em quinze dias, obra que era uma narrativa laudatória dos acontecimentos vividos entre 1494 e 1504, estando o autor ao serviço do governo de Soderini e do seu projecto de Ordinanza fiorentina.
O mundo mudara. A política que servira não o quer. A pena é a sua companhia, a necessidade a sua única virtude. Ante a tragédia, o sorriso. Há que escrever, mas, a anteceder qualquer outra escrita. a que permita viver. É pela necessidade que, logo no dia 13, escreve ao seu amigo Francesco Vettori (nasceu em 1474 e faleceu em 1139, sendo mais novo do que Maquiavel. Conheceram-se no quadro da actividade diplomática de ambos e tornaram-se amigos; trocaram uma longa série de epísto1as, sobretudo a partir do momento em que o secretário caiu em desgraça; A leitura deste epistolário permite reconstruir o perfil psicológico e o ambiente histórico em que o nosso autor viveu; cartas de aparência severa e grave, elas escondem, como diria Maquiavel numa delas, escrita a 31 de Janeiro de 1515, duas criaturas que, tal como a natureza, são variadas na essência do seu ser), designado, desde 30 de Dezembro de 1512, embaixador (oratore) da República junto da Cúria, em Roma, rogando-lhe que interceda por si e pelo irmão Totto.
A vida havia-os separado. Vettori vive uma vida prestigiada, cortesã, despreocupada, lamentando apenas a ociosidade e o ter de autoconter-se na sua postura que, não fossem as conveniências, seria libertina e irresponsável; Machiavelli conhece agora a penúria, o confinamento, a luta pelo pão, a ausência dos círculos onde se morrera e de meios para gozar a boa vida, em breve estará retirado para a pobreza rural, local onde tenta, escondendo a sua diminuída pessoa, salvar-se do desdém com que outros o possam olhar. A carta é um acto de contrição, um lamento, uma forma submissa de pedir. Maquiavel promete ser mais cauteloso e espera que os tempos novos sejam mais liberais e menos suspeitosos. Roga que o irmão seja colocado entre os familiares do papa de Medici e com isso beneficiado. Para si próprio suplica que o sumo pontífice, ou os seus, o possam aproveitar em qualche cose. A humildade no estender da mão mostra a que ponto a necessidade já enfraquece o orgulho. Escreve de novo, cinco dias volvidos, ao seu amigo Magnifice Orator, respondendo à missiva que, entretanto, recebera daquele a quem rogara ajuda e que, cauteloso, se mostra parco em prometer (a carta de Francesco é um exemplo acabado de refinada subtileza ante o infortúnio que não pode socorrer. Por um lado anima-o, por outro distancia-se; Maquiavel, inteligente e habituado ao género, deve ter compreendido a indisponibilidade do amigo e a hostilidade do meio em que este se movia, mas responde, considerando a carta gratíssima, e amorosa, e, num assomo de dignidade, deixa claro que viverá como puder, com os poucos meios de que dispõe).
Sem possibilidade de subsistir na cidade, jogando na prudência de não espicaçar a sorte, Maquiavel retira-se para a sua modesta propriedade em Sant’Andrea, localidade de La Strada, na Percussina, junto a San Casciano in Val di Pesa, na Toscana, enfrentando a paz agreste do exílio. Dali escreve, a 9 de Abril, uma nova carta a Francesco, a qual assina, contristado, como Niccolò Machiavelli, quondam Secret, (outrora secretário). É um Maquiavel desalentado, que se conformou com não desejar coisa alguma com paixão, mas que tenta, com afectuosa cortesia, não se mostrar excessivamente decaído na sua desgraçada fortuna». In Nicolau Maquiavel, O Príncipe, Introdução de José António Barreiros, tradução de Maria Jorge Figueiredo, Editorial Presença, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-23-3951-3.

Cortesia de EPresença/JDACT

sábado, 2 de julho de 2016

As Flores do Mal. Charles Baudelaire. «… a religião de Baudelaire, esse catolicismo travestido que se insurge contra os instintos originais, seja uma consequência lógica e como que uma conclusão de seu dandismo»

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«O dandismo baudelairiano está não apenas na raiz de toda a fundamentação estética do que produziu o autor, mas até mesmo na origem e na justificação de sua conduta humana e social. Recorra-se ao próprio poeta para que se entenda melhor essa instigante e paradoxal postura diante da vida e da arte. O que seria exactamente esse dândi e qual sua mais funda significação? Para Baudelaire, como para Pascal, a natureza estaria corrompida pela própria natureza, o que se torna particularmente claro quando, no fragmento XXII de Fusées, nos diz ele: l’homme, c’est-à-dire chacun, est si naturellement dépravé qu’il souffre moins de l’abaissement universel que de l’établissement d’une hiérarchie raisonnable. Essa visão de uma natureza desde sempre e necessariamente corrupta faz-se ainda mais nítida numa passagem de Éloge du maquillage, em L’art romantique, na qual Baudelaire sustenta que la nature n’enseigne rien, ou presque rien. Pouco adiante diz ele que o crime, dont l’animal humain a puisé le goût dans le ventre de sa mère, est originalement naturel, concluindo afinal que a virtude, e que o mal se fait sans effort, naturellement, par fatalité, ao passo que o bem est toujours le produit d’un art. Ao reagir dessa forma à ênfase que puseram algumas correntes do século XVIII sobre o papel da natureza enquanto fonte de todo o bem e de todo o belo, Baudelaire deixa muito clara sua posição: tudo o que é natural é abominável, incluíndo-se aí a mulher, que, por ser natural, c’est-à-dire abominable, é também toujours vulgaire, c’est-à-dire le contraire du dandy. É esse dândi que lhe justifica, como se lê no fragmento XVII de Fusées.  Em suma, uma self-purification and anti-humanity, como ele próprio grafa e grifa em Fusées e que corresponde à fórmula graças à qual o poeta ou fugia da dor intolerável ou a assumia, mas apenas sob o disfarce estético da maquilhagem. Entenda-se, pois, que a máscara do dândi, se de um lado é artifício, de outro não deixa de ser algo que se lhe aderiu à pele para sempre e tão profundamente que não mais lhe foi possível arrancá-la.
Claro está que, visto desse ângulo, o dandismo baudelairiano nada mais é que uma manifestação do espírito, um processo da vida interior cujas raízes e implicações são bem mais fundas do que se possa imaginar. É possível até, como sugerem Ferran e Ernest Raynaud, que a religião de Baudelaire, esse catolicismo travestido que se insurge contra os instintos originais, seja uma consequência lógica e como que uma conclusão de seu dandismo. O artifício do dandismo corrigiria assim a imperfeição natural, e esse é o desiderato único de toda a civilização. Quando Baudelaire nos afirma que tudo o que é natural é abominável, nada existe aí de subversivo, pois tal concepção está contida na ideia do pecado original. É também a partir desse procedimento aristocrático que se entende mais claramente o Baudelaire esteta, o escritor artista, o criador sempre insatisfeito com o que escrevia. Esse dândi é o próprio artista superior, o lúcido e refinado demiurgo do caos vocabular, aquele que se consagra à elaboração artificial, ou seja, intelectual, de um processo criativo do qual a natureza não participa. Corrupta em si mesma, a natureza é amoral e monstruosa. Compreende-se assim que, ao abordar o problema do dândi em L’art romantique, Baudelaire sustente: le mot dandy implique une quintessence de caractère et une intelligence subtile de tout le mecanisme moral dumonde. Esse dândi é, em suma, o próprio princípio da criação, centrado em si mesmo e produto de l’inébranlable résolution de ne pas être ému, assim como un feu latent qui se fait deviner, qui pourrait mais qui ne veut pas rayonner». In Charles Baudelaire, As Flores do Mal, 1857, Relógio d’Água, 2003, ISBN 978-972-708-762-4.

Cortesia de Relógio d’Água/JDACT

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Isto Não é Um Cachimbo. Michel Foucault. «Espreitando o desenho do cachimbo e o enunciado que lhe serve de legenda sobre a superfície bem claramente delimitada de um quadro, na medida em que se trata de uma pintura, as letras são apenas a imagem das letras na medida…»

jdact e wikipedia

O calígrafo desfeito
«(…) Magritte reabriu a armadilha que o caligrama tinha fechado sobre aquilo de que falava. Mas, com isso, a própria coisa levantou voo. Sobre a página, de um livro ilustrado, não se tem o hábito de prestar atenção a esse pequeno espaço em branco que corre por cima das palavras e por cima dos desenhos, que lhes serve de fronteira comum para incessantes passagens: pois é ali, sobre esses poucos milímetros de alvura, sobre a calma areia da página, que se atam, entre as palavras e as formas, todas as relações de designação, de denominação, de descrição, de classificação. O caligrama reabsorveu esse interstício; mas, uma vez reaberto, ele não o restitui; a armadilha foi fracturada sobre o vazio: a imagem e o texto caem, cada um de seu lado, segundo a gravitação que lhes é própria. Eles não têm mais espaço comum, mais lugar onde possam interferir, onde as palavras sejam susceptíveis de receber uma figura, e as imagens, de entrar na ordem do léxico. Na pequena, estreita faixa, incolor e neutra que, no desenho dei Magritte, separa o texto e a figura, é preciso ver um vazio, uma região incerta e brumosa que separa agora o cachimbo flutuante em seu céu de imagem e o pisoteamento terrestre das palavras desfilando em sua linha sucessiva. Ainda seria demais dizer que há um vazio ou uma lacuna: é antes uma ausência de espaço, um apagar do lugar-comum entre os signos da escrita e as linhas da imagem. O cachimbo que se encontrava indiviso entre o enunciado que o nomeava e o desenho que devia figurá-lo, esse cachimbo de sombra que cruzava os lineamentos da forma e a fibra das palavras, fugiu definitivamente. Desaparecimento que, do outro lado desse riacho pouco profundo, o texto constata divertidamente: isto não é um cachimbo. O desenho, agora solitário, do cachimbo, por mais que se faça tão semelhante quanto pode a essa forma que a palavra cachimbo designa ordinariamente; por mais que o texto se desenrole sob o desenho com toda a fidelidade atenta de uma legenda num livro erudito: entre eles só pode passar a formulação do divórcio, o enunciado que conteste ao mesmo tempo o nome do desenho e a referência do texto.

Em nenhum lugar há cachimbo
A partir daí pode-se compreender a última versão que Magritte deu de Isto não é um cachimbo. Espreitando o desenho do cachimbo e o enunciado que lhe serve de legenda sobre a superfície bem claramente delimitada de um quadro (na medida em que se trata de uma pintura, as letras são apenas a imagem das letras na medida em que se trata de um quadro-negro, a figura é apenas a continuação didáctica de um discurso), colocando esse quadro sobre um triedro de madeira espessa e sólida, Magritte faz tudo o que é preciso para reconstituir (seja pela perenidade de uma obra de arte, seja pela verdade de uma lição de coisas) o lugar-comum à imagem e à linguagem. Tudo está solidamente amarrado no interior de um espaço escolar: um quadro mostra um desenho que mostra a forma de um cachimbo; e um texto escrito por um zeloso professor primário mostra que é bem de um cachimbo que se trata. Não vemos o dedo indicador do mestre, mas ele reina em todos os lugares, assim como sua voz, que está articulando claramente: isto é um cachimbo. Do quadro à imagem, da imagem ao texto, do texto à voz, uma espécie de dedo indicador geral aponta, mostra, fixa, assinala, impõe um sistema de reenvios, tenta estabilizar um espaço único. Mas por que introduzi ainda a voz do mestre? porque mal ela disse isto é um cachimbo, e já foi obrigada a retomar e balbuciar: isto não é um cachimbo, mas o desenho de um cachimbo, isto não é um cachimbo, mas uma frase dizendo que é um cachimbo, a frase: isto não é um cachimbo, não é um cachimbo; na frase: isto não é um cachimbo, isto não é um cachimbo: este quadro, esta frase escrita, este desenho de um cachimbo, tudo isto não é um cachimbo». In Michel Foucault, Isto Não é Um Cachimbo, Editora Paz e Terra, 1973, tradução de Jorge Coli, 1989/2004, ISBN 978-857-753-031-1.

Cortesia EPTerra/JDACT

quarta-feira, 16 de março de 2016

Interpretações. O Príncipe. Nicolau Maquiavel. «… a demonstração do que sente quando pensa, é o modo como se refere ao momento em que o carrasco leva para a morte os seus companheiros de infortúnio»

jdact

Jamais houve homem menos maquiavélico do que Maquiavel. In Villari

Maquiavel, o prisioneiro do maquiavelismo
«(…) Preso por ter traído os de Medici, Maquiavel vai ver os seus tormentos terem fim, paradoxalmente, ironia do destino, por causa do aumento de poder da poderosa família dos Palleschi, nome que lhes adveio por causa das bolas que ornam a sua cota de armas, símbolo heráldico dos seus: com a aproximação da Primavera, a 12 de Março do ano de 1513, a cidade comemora a eleição de mais um papa, mais um de Medici, Giovanni, segundo filho de Lorenzo, o Magnífico, que ascende com o nome de Leão X, substituindo Júlio II no trono de São Pedro.
A cidade entra em festa para celebrar o evento, um autêntico carnaval vive-se por cinco dias nas ruas, nas casas e nos palácios, muitos no sonho delirante da paz perpétua, outros pelo simples gozo venal do contentamento pagão. Os Florentinos imaginam já as benesses que podem cair-lhes do céu com um papa a que podem chamar seu. As prisões abrem entretanto as portas, a velha superstição de que dar liberdade liberta. Maquiavel é solto. Salvo da má fortuna, este homem sabe que os corredores do poder, de que fora funcionário, estão para trás. Expulso da cena palaciana, resta-lhe, por cautela, retirar-se. Mas não desiste. Servir os grandes, tornando-se-lhes útil, é, afinal, a sua biografia. Usa, para tanto, a única força que tem ao seu dispor, escrever, e a única forma como o sabe fazer, a ironia.
Ainda na cadeia, Maquiavel não baixara o nível da esperança. Estudiosos da sua controversa vida situam dois sonetos, uma canção (Se avessi arco) e um Capítulo Pastoral, como tendo sido escritos naquelas adversas condições carcetárias, na ânsia de obter a graça do Magnífico Giuliano, irmão do papa. Textos inesperados, eles são a melhor demonstração de uma ambígua personalidade em que, naquele ambiente de incerteza, diminuído pelo medo, minado pelo sofrimento, não o abandona o riso de altivez que o aproxima, aos olhos de tantos, do velhaco calculista e do lisonjeador interesseiro. A poesia, com a sua capacidade de concentrar em imagens conceitos extensos, é, por ventura, o melhor autorretrato da sua pessoa. E o que escreveu sobre a sua condição de preso, o que deixou sobre a execução de Boscoli e Capponi, é a demonstração do que sente quando pensa, é o modo como se refere ao momento em que o carrasco leva para a morte os seus companheiros de infortúnio». In Nicolau Maquiavel, O Príncipe, Introdução de José António Barreiros, tradução de Maria Jorge Figueiredo, Editorial Presença, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-23-3951-3.

Cortesia de EPresença/JDACT

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

O Nascimento do Mundo Moderno. Stephen Greenblatt. «Um gesto impertinente, uma recusa de prestar reverência, ou se ajoelhar, ou descobrir a cabeça diante da pessoa certa, podia acarretar um nariz rasgado ou um pescoço partido…»

Cortesia de wikipedia

O Caçador de Livros
«No inverno de 1417, Poggio Bracciolini ia a cavalo pelos morros e os vales arborizados do sul da Alemanha a caminho do seu distante destino, um mosteiro que segundo se dizia tinha um depósito de velhos manuscritos. Como deve ter ficado imediatamente claro para os aldeões que o viam das portas de seus casebres, o homem era estrangeiro. Pequeno e barbeado, provavelmente estava vestido de forma modesta com uma túnica e uma capa bem-feitas, mas simples. O fato de não ser do campo estava claro, e no entanto ele não se parecia com nenhum dos moradores da cidade e da corte que os nativos dali estariam acostumados a ver de passagem de vez em quando. Desarmado e sem a protecção de uma armadura barulhenta, certamente não era um cavaleiro teutónico, um único golpe firme com o bastão de osso de um campónio qualquer teria dado cabo dele com facilidade. Embora não parecesse ser pobre, não tinha nenhuma das marcas familiares de riqueza e status: não era da corte, com roupas lindas e cabelos perfumados arrumados em longos cachos, e também não era um nobre caçando com cães ou águias. E, como ficava claro pelas roupas e pelo corte do cabelo, não era padre nem monge.
O sul da Alemanha na época prosperava. A catastrófica Guerra dos Trinta Anos que assolaria a Alemanha rural e abalaria cidades inteiras da região ainda estava distante, assim como os horrores de nosso próprio tempo, que destruíram muito do que tinha sobrevivido daquele período. Além de cavaleiros, cortesãos e nobres, outros h mens de peso cruzavam as estradas sulcadas e compactadas. Ravensburg, perto de Constança, estava envolvida no comércio de tecidos e recentemente havia começado a produzir papel. Ulm, na margem esquerda do Danúbio, era um vigoroso centro de manufactura e comércio, assim como Heidenheim, Aalen, a linda Rothenburg ob der Tauber e a ainda mais linda Würzburg. Burgueses, mercadores de lã, couro e tecidos, vinhateiros e cervejeiros, artesãos e seus aprendizes, assim como diplomatas, banqueiros e cobradores de impostos, todos eles eram visões conhecidas. Ainda assim, Poggio não se encaixava. Havia também figuras menos prósperas, ajornalados, funileiros, amoladores de facas e outros cujos ofícios os mantinham na estrada; peregrinos a caminho de santuários, onde podiam rezar diante de uma gota de sangue sagrado ou um fragmento do osso de um santo; jograis, adivinhos, mascates, acrobatas e saltimbancos que viajavam entre as cidades; fugitivos, vagabundos e ladrões de galinhas. E também os judeus, com os seus chapéus cónicos e os distintivos amarelos que as autoridades cristãs os obrigavam a usar, para que pudessem ser facilmente identificados como alvos de desprezo e de ódio. Poggio certamente não era nada disso.
Para aqueles que o viam passar, ele na verdade deve ter sido uma figura desorientadora. A maioria das pessoas naquela época demonstrava a sua identidade, o seu lugar no sistema social hierarquizante, através de sinais visíveis que todos podiam ler, como as manchas indeléveis nas mãos de um tintureiro. Poggio beirava o incompreensível. Um indivíduo isolado, fora das estruturas de família e ocupação, fazia muito pouco sentido. O que importava era do que a pessoa fazia parte, e em alguns casos a quem pertencia. O pequeno dístico que Alexander Pope escreveu jocosamente no século XVIII, para que fosse colocado num dos pugs da rainha, poderia ter sido aplicado com sinceridade ao mundo que Poggio habitava:

De Sua Majestade eu sou por bem;
E vós, senhor, sois cão de quem?

O núcleo familiar, a rede de parentesco, a guilda, a corporação, eram essas as bases em que se fundava a noção de pessoa. A independência e a auto-suficiência não tinham peso cultural; na verdade, mal podiam ser concebidas, muito menos valorizadas. A identidade tinha um lugar preciso e bem sabido numa cadeia de comando e obediência. Tentar romper a cadeia era uma tolice. Um gesto impertinente, uma recusa de prestar reverência, ou se ajoelhar, ou descobrir a cabeça diante da pessoa certa, podia acarretar um nariz rasgado ou um pescoço partido. E, afinal, para quê? Não havia alternativas coerentes, pelo menos nenhuma que fosse articulada pela Igreja, ou pela corte, ou pelos oligarcas da cidade. O melhor procedimento era aceitar humildemente a identidade reservada pelo destino: o lavrador só precisava saber lavrar, o tecelão, tecer, o monge, rezar. Era possível, claro, ser melhor ou pior em cada uma dessas coisas; a sociedade em que Poggio se encontrava reconhecia e, num grau considerável, recompensava competências incomuns. Mas valorizar uma pessoa por alguma individualidade inefável, ou por versatilidade, ou curiosidade intensa, era virtualmente inaudito. Na verdade, a Igreja dizia que a curiosidade era um pecado mortal. Deixar-se levar por ela significava correr o risco de uma eternidade no inferno. Quem, então, era esse Poggio? Por que não proclamava a sua identidade nas costas, como as pessoas decentes costumavam fazer? Ele não usava insígnias e não carregava fardos de mercadorias. Tinha o ar confiante de alguém acostumado a viver entre os grandes, mas ele próprio, evidentemente, não era figura de grande importância. Todos sabiam que a aparência tinha uma dessas pessoas importantes, pois aquela era uma sociedade de servos, guardas armados e criados de libré. O estrangeiro, com trajes simples, cavalgava com apenas um acompanhante. Quando pararam na estalagem, o acompanhante, que parecia ser um assistente ou um criado, fez os pedidos; quando o mestre falou, ficou claro que sabia pouco ou nada de alemão, e que sua língua nativa era o italiano». In Stephen Greenblatt, The Swerve, O Nascimento do Mundo Moderno, A Virada, 2011, tradução de Caetano Galindo, Companhia das Letras, 2012, ISBN 978-853-592-114-4.

Cortesia da CdasLetras/JDACT

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Isto Não é Um Cachimbo. Michel Foucault. «Designar e desenhar não se superpõem, salvo no jogo caligráfico que ronda por trás do conjunto e que é conjurado ao mesmo tempo pelo texto, pelo desenho e por sua actual separação»

jdact e wikipedia

O calígrafo desfeito
«(…) Apesar da aparência, o caligrama não diz, em forma de pássaro, de flor ou de chuva: isto é uma pomba, uma flor, uma chuvarada que cai; desde que se põe a dizê-lo, desde que as palavras se põem a falar e a fornecer um sentido, é que o pássaro já voou e que a chuva secou. Para quem o vê, o caligrama não diz, não pode ainda dizer: isto é uma flor, isto é um pássaro; está ainda demasiadamente preso na forma, demasiadamente sujeito à representação por semelhança para formular uma tal afirmação. E quando alguém o lê, a frase que se decifra (isto é uma pomba, isto é uma chuvarada), não é um pássaro, não é mais uma chuvarada. Por astúcia ou impotência, pouco importa, o caligrama não diz e não representa nunca no mesmo momento; essa mesma coisa que se vê e se lê é morta na visão, mascarada na leitura.
Magritte redistribuiu no espaço o texto e a imagem; cada um retoma o seu lugar; mas não sem reter alguma coisa do esquivo que é próprio ao caligrama. A forma desenhada do cachimbo expulsa todo texto explicativo ou designativo, tanto é reconhecível; o seu esquematismo escolar diz muito explicitamente: você vê tão bem o cachimbo que sou, que seria ridículo para mim dispor minhas linhas de modo a lhes fazer escrever: isto é um cachimbo. As palavras, decerto, me desenhariam menos bem do que eu me represento. E, por sua vez, o texto, nesse desenho caprichado que representa uma escrita, prescreve: tome-me por aquilo que manifestamente sou: letras colocadas umas ao lado das outras, com essa disposição e essa forma que facilitam a leitura, asseguram o reconhecimento e se abrem mesmo ao aluno mais balbuciante; não pretendo arredondar-me depois me estirar para tornar-me primeiro o fornilho, depois o tubo de um cachimbo: não sou nada além das palavras que você está lendo.
No caligrama jogavam, um contra o outro, um não dizer ainda e um não mais representar. No Cachimbo de Magritte, o lugar de onde nascem essas negações e o ponto sobre o qual se aplicam são completamente diferentes. O não dizer ainda da forma voltou, não exactamente como uma afirmação, mas como uma dupla posição: de um lado, no alto, a forma bem lisa, bem visível, bem muda, e cuja evidência deixa altivamente, ironicamente, o texto dizer o que quer, qualquer coisa; e de outro, em baixo, o texto, espalhado segundo a sua lei intrínseca, afirma a sua própria autonomia diante daquilo que ele nomeia. A redundância do caligrama repousava sobre uma relação de exclusão: em Magritte, a distância dos dois elementos, a ausência de letras no seu desenho, a negação expressa no texto, manifestam afirmativamente duas posições.
Mas temo ter negligenciado aquilo que é talvez essencial ao Cachimbo de Magritte. Fiz como se o texto dissesse: Eu (esse conjunto de palavras que você está lendo) não sou um cachimbo; me comportei como se houvesse duas posições simultâneas e bem separadas uma da outra, no interior do mesmo espaço: a da figura e a do texto. Mas omiti que, de um ao outro, um liame subtil, instável, ao mesmo tempo insistente e incerto, estava assinalado. E estava assinalado pela palavra isto. É preciso, portanto, admitir entre a figura e o texto toda uma série de cruzamentos; ou, antes, de um ao outro, ataques lançados, flechas atiradas contra o alvo adverso, trabalhos que solapam e destroem, golpes de lança e feridas, uma batalha. Por exemplo: isto (este desenho que vocês estão vendo, cuja forma sem dúvida reconhecem e do qual acabo de desatar os liames caligráficos) não é (não é substancialmente ligado a..., não é constituído por..., não recobre a mesma matéria que...) um cachimbo (quer dizer, essa palavra pertencente à sua linguagem, feita de sonoridades que pode pronunciar-se e cujas letras que lê neste momento traduzem). Isto não é um cachimbo pode, portanto, ser lido assim: mas, ao mesmo tempo, esse mesmo texto enuncia uma coisa completamente diferente: isto (este enunciado que você vê se dispôr sob seus olhos numa linha de elementos descontínuos, e do qual isto é ao mesmo tempo o designante e a primeira palavra) não é (não poderia equivaler nem se substituir a..., não poderia representar adequadamente...) um cachimbo (um desses objectos que você pode ver lá, acima do texto, uma figura possível, intercambiável, anónima, portanto inacessível a qualquer nome).
Então, é preciso ler: ora, no total, aparece facilmente que o enunciado de Magritte é negado pela imediata e recíproca dependência do desenho do cachimbo e do texto por meio do qual se pode nomear esse mesmo cachimbo. Designar e desenhar não se superpõem, salvo no jogo caligráfico que ronda por trás do conjunto e que é conjurado ao mesmo tempo pelo texto, pelo desenho e por sua actual separação. Daí a terceira função do enunciado. Isto (este conjunto constituído por um cachimbo em estilo caligráfico e por um texto desenhado) não é (é incompatível com...) um cachimbo (este elemento misto que depende ao mesmo tempo do discurso e da imagem, e cujo jogo, verbal e visual, do caligrama, queria fazer surgir o ambíguo ser)». In Michel Foucault, Isto Não é Um Cachimbo, Editora Paz e Terra, 1973, tradução de Jorge Coli, 1989/2004, ISBN 978-857-753-031-1.

Cortesia EPTerra/JDACT

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Interpretações. O Príncipe. Nicolau Maquiavel. «Ausente de casa, as autoridades tinham lançado editais ameaçando com pena de confisco e por rebelião os que, sabendo onde ele estivesse, não o denunciassem em uma hora e conseguiram assim…»

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Jamais houve homem menos maquiavélico do que Maquiavel. In Villari

Maquiavel, o prisioneiro do maquiavelismo
«(…) Maquiavel conhece o terreno que pisa e tenta seguir os seus próprios conselhos, serve-se da lisonja, essa perfídia dos fracos. É por isso que, astuto, mesmo já apeado e com a desgraça a bater-lhe à porta, tenta manifestar o seu obsequioso respeito pelos novos senhores, manifestar a esperança abonatória em que a quietíssima cidade pudesse continuar a viver tão honrada agora que era governada por estes magníficos de Medici, como sucedera quando fora governada pelo antecessor dos novos senhores, o excelente Lorenzo, falecido em 1492. Só que é tempo de perseguição e nem a adulação lhe vale como escudo ou como espada. No dia 10, o secretário fica a saber que lhe é proibido ausentar-se do domínio florentino e que fora condenado a uma multa de mil florins; uma semana depois, a17, é vedada durante um ano a sua entrada no Palazzo Vecchio, onde servira; até 10 de Dezembro sofre ainda uma ignominiosa investigação ao modo como administrara o dinheiro destinado ao pagamento da milícia florentina. A justiça sempre gostou de se mostrar forte com os fortes enfraquecidos.
Inicia-se assim um tempo de exílio, que virá a agravar-se no ano seguinte: as ideias deste homem irão castigá-lo através da penitência física, pela dor e pela privação. Aquilo que havia sido a hipocrisia ao serviço da vida diplomática e da manutenção da sua carreira, como servidor dos interesses de Sua Senhoria, tornar-se-á razão e sistema, a vida sofrida, mestra. Uma conjura, em que são dados como envolvidos Agostino di Luca Capponi, Pietro Paolo Boscoli, Niccolò Valori e Giovanni Folchi, move-se contra os de Medici, o assassínio do cardeal Giovanne pensado pelo bando como um meio cristão de livrar a cidade do que consideram ser um dos fundamentos da tirania.
As autoridades descobrem-na e o nome de Maquiavel é encontrado numa lista que um dos presos supostamente teria perdido. À demissão, à fixação de residência, à condenação em multa, segue-se agora a prisão.
Ausente de casa, as autoridades tinham lançado editais ameaçando com pena de confisco e por rebelião os que, sabendo  onde ele estivesse, não o denunciassem em uma hora e conseguiram assim, pelo medo, que não pela recompensa, deitar-lhe a mão. Tudo se lhe muda do dia para a noite. Perdido o conforto das antecâmaras do poder, segue-se agora o sofrimento da cadeia e, com ela, vinte e dois dias de cárcere e de tortura, dias horrendos, de ferros e correntes, passado pelas cordas várias vezes, temendo pela própria vida, como escreveu a 26 de Junho, numa carta ao sobrinho, o mercador Giovanni Vernacci, filho de sua irmã Primavera, na altura comerciante em Istambul. Pietro Boscoli e Agostino Capponi são condenados, pelos Otto (di Guardia), à morte por decapitação, sofrida a 23 de Fevereiro. Da sua cela, as pernas atadas, Maquiavel segue-lhes os últimos momentos, os cânticos fúnebres, intui o golpe de machado que arrancou a cabeça a Pietro, as duas machadadas que foram necessárias para a separar do corpo do infeliz Agostino, como se a vida quisesse demonstrar, simbolicamente, aos seus ineptos carrascos, quanto essa incapacidade de o matarem era sintoma de uma inocência que até ao fim proclamara.
Incerta a sua responsabilidade, Maquiavel continua preso e é sujeito a tortura para que confesse. Sofre o suplício de seis tratos de corda, o polé, içado e solto em queda livre, quase a pontos de se desmembrar, as costelas se lhe rasgarem, a dor o fazer vergar, dizendo assim a verdade ou a mentira, qualquer coisa que satisfizesse, enfim, os juízes, sossegando-lhes a consciência punitiva pré-formada. Porém, resiste, ironizando com a miserável condição em que se encontra, loca infecta, a que ele por ironia chama, num verso entretanto escrito, a poesia como companheira, o sì delicato ostello». In Nicolau Maquiavel, O Príncipe, Introdução de José António Barreiros, tradução de Maria Jorge Figueiredo, Editorial Presença, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-23-3951-3.

Cortesia de EPresença/JDACT

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Contos Proibidos. Rui Mateus. «A corajosa campanha de Humberto Delgado, no final dos anos 50, criara uma grande esperança no seio da maioria dos portugueses. O primeiro núcleo de Londres da Acção Socialista foi lançado no início de 1970 por mim, com Alberto Lagoa, Carlos Alves, Pedro Ferreira Almeida, …»

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Os anos da inocência, 1944-1974
«(…) Apesar do impacto da cultura americana na minha formação e das insistências da minha família americana, só não fiquei então nos Estados Unidos por me recusar a fazer serviço militar, que me obrigaria a um estágio na Guerra do Vietname. Após o meu regresso a Portugal em finais de 1963, senti que a obsessão com as guerras coloniais tinha mergulhado o nosso país num clima de indescritível isolacionismo e histeria. Senti enorme dificuldade em falar com as pessoas da minha geração, para quem falar das minhas experiências na América era o mesmo que falar de ficção científica. Anos mais tarde, viria a notar a curiosa coincidência de Humberto Delgado, cuja campanha eleitoral tanto marcara as minhas opções políticas, também ter compreendido pela primeira vez o significado da democracia durante a sua estada nos Estados Unidos. Após a inspecção militar consegui autorização para uma viagem a Inglaterra de onde decidi não regressar a Portugal. Tinha então vinte anos e aquele país vivia um excitante período de euforia libertária e de criatividade. O governo trabalhista de Harold Wilson, de que James Callaghan era então ministro do Interior, fechava os olhos aos que se recusavam a participar na Guerra do Vietname e, no caso português, nas guerras coloniais. Embora normalmente não oficializasse a concessão de asilo político aos refractários e desertores norte-americanos e portugueses que iam chegando à Grã-Bretanha, permitia o prolongamento dos seus vistos de estada, mesmo com passaportes caducados, até que ao fim de quatro anos pudessem ser considerados residentes naquele país. No seio dos portugueses, onde proliferavam minúsculos grupos de extrema-esquerda, a única actividade democrática de relevo organizava-se então, sem exigências de rigidez político-partidária, à volta do jornalista e escritor António Figueiredo, antigo companheiro de Humberto Delgado e mais conhecido pelas suas crónicas na BBC. Pessoa muito respeitada por ingleses e portugueses em geral, foi graças à amizade que estabeleci com ele e aos seus contactos com o Labour Party que foi possível criar, em Londres, o primeiro núcleo organizado da Acção Socialista Portuguesa no estrangeiro. Mas, apesar da sua desinteressada colaboração e de se considerar socialista, António Figueiredo nunca aderiria à Acção Socialista e só entraria para o Partido Socialista após o 25 de Abril. O primeiro núcleo de Londres da Acção Socialista foi lançado no início de 1970 por mim, com Alberto Lagoa, Carlos Alves, Pedro Ferreira Almeida, Eduardo Silva e, mais tarde, Aurea Rego, José Neves e Seruca Salgado.
Em Roma estavam Tito Morais e Gil Martins, em França Mário Soares, Ramos Costa, Coimbra Martins, Liberto Cruz e, mais tarde, Jorge Campinos e, na Bélgica, Bernardino Gomes. O Fernando Loureiro vivia na Suíça e na Alemanha estavam o Carlos Novo, o Desidério Lucas do Ó, o Carlos Queixinhas e o Gomes Pereira. Em 1971 fui viver para a Suécia onde lançaria um novo núcleo com metalúrgicos da construção naval dos estaleiros da Kockums, entre os quais Mário Nobre, Armindo Carrilho e o José Matos. Estes e mais ou menos meia centena de pessoas residentes em Portugal constituíam então a totalidade do movimento socialista português embora, anos mais tarde, num sintomático gesto da grande maleabilidade histórica que tem caracterizado o Partido Socialista, a lista de fundadores fosse refeita para não ferir susceptibilidades, passando a integrar cento e onze nomes. Foi-me então atribuído o número quarenta e três, embora à data da minha adesão não existissem na ASP, que precedeu o Partido Socialista, mais de vinte elementos.
A corajosa campanha de Humberto Delgado, no final dos anos 50, criara uma grande esperança no seio da maioria dos portugueses. Era a primeira vez, desde o fim da II Guerra Mundial, que simultaneamente o ditador Salazar, o Partido Comunista e a generalidade dos portugueses verificavam ser possível substituir a ditadura por um regime pluralista, semelhante ao dos outros países da Europa Ocidental. A humilhante expulsão de Portugal de Goa, Damão e Diu em 1961e o início das lutas armadas de libertação na Guiné, em Angola e Moçambique, em simultâneo com a ignorante teimosia de Salazar em não querer compreender os ventos de mudança da descolonização, conduziriam inevitavelmente ao êxodo de dezenas de milhares de jovens portugueses para uma oposição activa à ditadura, longe do alcance da polícia política (PIDE), e ao crescente isolamento internacional do país. Por outro lado, a crescente contestação maoista ao comunismo soviético viria a pôr fim ao monopólio que o PC detinha sobre a oposição portuguesa. Existiam, finalmente, condições para o aparecimento de um partido socialista em Portugal, apesar do clima político, então dominado pela histeria do terrorismo no Ultramar, não parecer favorável à criação de estruturas organizadas. O nascimento da Acção Socialista, em 1964, representa assim um acto de grande intuição política, que só a dedicação militante de Manuel Tito Morais, a generosidade e os contactos internacionais de Francisco Ramos Costa e o conhecido optimismo de Mário Soares possibilitariam. Os ataques de que foi alvo do PC, dos inúmeros grupos de extrema-esquerda e do próprio governo, indicavam a importância que tal passo representara». In Rui Mateus, Contos Proibidos, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1996, ISBN 972-20-1316-5.

Cortesia de DQuixote/JDACT

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Interpretações no 31. O Príncipe. Nicolau Maquiavel. «… que foi, e é, um dos maiores escritores da literatura italiana, e, se compreendida e situada no tempo dele, a sua obra ‘é a de um dos mais argutos, lúcidos e corajosos pensadores políticos’…»

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Jamais houve homem menos maquiavélico do que Maquiavel. In Villari

Maquiavel, o prisioneiro do maquiavelismo
«(…) Envolto num ambiente de contenda, Maquiavel acabou por ficar atado ao pelourinho da infâmia, as suas ideias, tanto no linguajar popular como na conceitualização erudita, associadas a uma acepção pecaminosa, simbolizando a palavra maquiavélico a urdidura do enredo enganador, a vileza da traição aleivosa, a perfídia desapiedada, em suma, o principado da amoralidade, em resumo, o(a) diabólico(a). Papini, que tem o condão de resumir grandes reflexões em pequenas frases, sintetizou: … Maquiavel ficou com fama de porco por causa de La Mandragola e de canalha por causa de O Príncipe. E, no entanto, poder-se-á dizer, como escreveu Sena, que ...ele foi, antes de mais, um patriota italiano e um estadista angustiado por ver a sua Itália dividida em principados, repúblicas, estados papais, e territórios de potências estrangeiras? Poder-se-á dizer, acompanhando de novo Jorge de Sena, um engenheiro a quem a literatura tanto deve, que foi, e é, um dos maiores escritores da literatura italiana, e, se compreendida e situada no tempo dele, a sua obra é a de um dos mais argutos, lúcidos e corajosos pensadores políticos de todas as épocas? Talvez, ou nem tanto. Eis do que se trata: de amar, odiar ou compreender este livro. Lê-lo não basta. Ele pode ser um produto do riso irónico sobre os poderosos ou o fruto de uma raiva contida sobre as suas vítimas. Manual de política ou novela alegórica? Vejamos pois, começando pelo seu autor, aproximando-nos do momento em que o escreveu.

Escrever para parecer vivo
Estamos no dia 7 de Novembro de 1512, em Florença. O secretário da Segunda Chancelaria, cumulativamente secretário dos Dieci di Libertà, organismo incumbido da defesa da cidade, Niccolò Machiavegli, como assinava então, é informado pela Senhoria de que perdeu os seus lugares, estando deles exonerado, sendo substituído por um também Niccolò, mas Michelozzi, de quem não reza hoje a História. Mudara o regime que governava a cidade, os de Medici haviam regressado em força, depois de dezoito anos de exílio. Piero Soderini, o gonfaloniere vitalício, (o governo de Florença era então confiado bimestralmente a nove cidadãos eleitos com o título de gonfaloniere, gonfaloneiro em português; Piero Soderini (1452-1522) sê-lo-ia por designação vitalícia, mas o seu mandato acabou por durar apenas oito anos) cabeça da ordem política agora caída, vira ser-lhe retirado, num primeiro momento, essa perenidade do cargo, para ser depois substituído por Giovan Battista Ridolfi. A sua tibieza, a incapacidade de lidar com os graves problemas do seu tempo, o facto de ter consentido a realização do concílio cismático de Pisa, evento animado pelo rei Luís XII de França e que levou à queda do papa Júlio II, foram a causa da sua desgraça. Niccolò, considerado um mannerino do deposto, um instrumento da sua política, teria de seguir-lhe os passos.
A estrutura do mando é profundamente alterada. Tanto Maquiavel como o seu dilecto coadjuctor, Biagio Buonaccorsi, sabem que a sua posição está em causa. Aqueles que haviam servido estão apeados. Para o autor de O Príncipe nasce aqui a grande lição de vida, a confirmação do essencial da sua filosofia, o que faz dele, séculos volvidos, o mestre observador da arte da política: a bondade, a generosidade, a tibieza, o escrúpulo moral são, na política, instrumentos inúteis. Comentando, em um dos seus Discorsi, o comportamento daquele seu senhor agora caído, censura-lhe a paciência e a bondade de alma e, sobretudo, o ter seguido os humores da multidão, preterindo os conselhos dos homens sábios, franqueando as portas aos seus adversários; ao não ter tomado as medidas extraordinárias que a situação exigia, perdera a pátria, o Estado e a sua própria reputação. O regime que servira caíra ante a sua incapacidade de fazer mal: eis, nesta apologia do mal instrumental, neste desprezo pela inocência do bem absoluto, nesta ênfase do conselho da aristocracia dos sábios, neste relegar dos humores da multidão, a estrutura resumida do que pensava Maquiavel sobre o modo como deve agir o político, para que possa conseguir sucesso, no meio hostil em que tem de sobreviver». In Nicolau Maquiavel, O Príncipe, Introdução de José António Barreiros, tradução de Maria Jorge Figueiredo, Editorial Presença, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-23-3951-3.

Cortesia de EPresença/JDACT

sábado, 13 de junho de 2015

A Garota das Laranjas. Jostein Gaarder. «Você está sentado, Georg? É bom que esteja, porque eu vou-lhe contar uma história electrizante... Talvez já se tenha instalado confortavelmente no sofá de couro amarelo. Isso caso vocês não o tenham trocado por outro, como vou saber?»

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«(…) Está sentado, Georg? Tive a impressão de estar ouvindo aquele vozeirão de trovoada, e agora não só no vídeo, eu a ouvia como se meu pai tivesse ressuscitado de uma hora para a outra e estivesse ali na sala connosco. Embora o envelope estivesse fechado, achei bom perguntar se os adultos já tinham lido aquelas páginas, mas todos negaram com a cabeça e garantiram que não tinham lido uma palavra. Absolutamente nada, disse Jorgen, e sua voz me pareceu acanhada, coisa não muito típica dele. Mas ele acrescentou que, quando eu terminasse, talvez eu pudesse deixá-los ler a carta do meu pai. Devia estar louco para saber o que havia nela. Sei lá por quê, achei que estava com a consciência pesada.
Você está sentado, Georg? É bom que esteja, porque eu vou-lhe contar uma história electrizante... Talvez já se tenha instalado confortavelmente no sofá de couro amarelo. Isso caso vocês não o tenham trocado por outro, como vou saber? Também posso perfeitamente imaginá-lo na velha cadeira de balanço do jardim-de-inverno, da qual sempre gostou tanto. Ou será que está lá fora na varanda? Não sei qual é a estação do ano. E, além disso, é possível que já nem morem mais no Humlevei. Como hei de saber? Eu não sei nada. Quem é o chefe do governo norueguês? Como se chama o secretário-geral das Nações Unidas? E, diga, como vai o telescópio Hubble? Tem ideia? Será que os astrónomos já sabem como é feito o universo? Muitas vezes tentei imaginar-me aí no futuro, mas nunca consegui ter uma ideia nem mesmo aproximada de agora, na sua vida actual. A única coisa que sei é quem é. Só isso. Não sei sequer com que idade está lendo isto. Talvez tenha doze ou catorze anos, e eu, o seu pai, há muito estou fora do tempo.
O facto é que já me sinto uma assombração, tenho de respirar fundo toda a vez que penso nisso. Agora entendo por que os fantasmas não param de fungar como bobos. Não é para assustar as pessoas que vieram depois deles. É porque acham dificílimo respirar noutra época tão diferente. Não é só um lugar na existência que nós temos. Temos um tempo limitado que nos foi atribuído. É assim, e só posso tomar como ponto de partida as coisas que agora me rodeiam. Escrevo em Agosto de 1990. Hoje, ou seja, no dia em que me ler, por certo já terá esquecido a maior parte do que nós dois vivemos nos meses quentes daquele verão em que tinha três anos e meio. Mas esses dias continuam pertencendo-nos, e nós ainda podemos passar muitas horas agradáveis juntos.
Vou contar uma coisa que actualmente não consigo tirar da cabeça: a cada dia que passa e a cada coisinha à toa que nós dois fazemos, aumenta a possibilidade de se lembrar de mim. Agora eu conto as semanas e os dias. Na terça-feira, nós estivemos no alto da torre de Tryvann, de onde se pode ver a metade do reino, dava para ver até a Suécia. A mãe também foi, fomos os três. Mas será que se lembra disso? Não pode ao menos tentar recordar, Georg? Tente, faça um esforço, pois isso tudo está aí, em algum lugar dentro de… Lembra daquele seu comboio enorme de madeira? Todo o dia passa horas brincando com ele. Eu estou-o vendo agora. Os trilhos, vagões e balsas espalhados no chão, exactamente como os deixou há pouco. No fim, eu precisei fazê-lo largar tudo porque estava na hora de ir ao jardim-de-infância, mas ainda tenho a impressão de que as suas mãozinhas continuam tocando no brinquedo. Não tive coragem de tirar um só trilho do lugar». In Jostein Gaarder, A Garota das Laranjas, tradução de Luis Araújo, Companhia das Letras, 2008, ISBN 978-853-590-712-4.

Cortesia Cletras/JDACT