«(…) Está
sentado, Georg? Tive a impressão de estar ouvindo aquele vozeirão de trovoada,
e agora não só no vídeo, eu a ouvia como se meu pai tivesse ressuscitado de uma
hora para a outra e estivesse ali na sala connosco. Embora o envelope estivesse
fechado, achei bom perguntar se os adultos já tinham lido aquelas páginas, mas
todos negaram com a cabeça e garantiram que não tinham lido uma palavra. Absolutamente
nada,
disse Jorgen, e sua voz me pareceu acanhada,
coisa não muito típica dele. Mas ele acrescentou que, quando eu terminasse, talvez
eu pudesse deixá-los ler a carta do meu pai. Devia estar louco para saber o que
havia nela. Sei lá por quê, achei que estava com a consciência pesada.
Você está sentado, Georg? É bom
que esteja, porque eu vou-lhe contar uma história electrizante... Talvez já se tenha
instalado confortavelmente no sofá de couro amarelo. Isso caso vocês não o
tenham trocado por outro, como vou saber? Também posso perfeitamente imaginá-lo
na velha cadeira de balanço do jardim-de-inverno, da qual sempre gostou tanto.
Ou será que está lá fora na varanda? Não sei qual é a estação do ano. E, além
disso, é possível que já nem morem mais no Humlevei. Como hei de saber? Eu não
sei nada. Quem é o chefe do governo norueguês? Como se chama o secretário-geral
das Nações Unidas? E, diga, como vai o telescópio Hubble? Tem ideia? Será que
os astrónomos já sabem como é feito o universo? Muitas vezes tentei imaginar-me
aí no futuro, mas nunca consegui ter uma ideia nem mesmo aproximada de agora,
na sua vida actual. A única coisa que sei é quem é. Só isso. Não sei sequer com
que idade está lendo isto. Talvez tenha doze ou catorze anos, e eu, o seu pai,
há muito estou fora do tempo.
O facto é que já me sinto uma
assombração, tenho de respirar fundo toda a vez que penso nisso. Agora entendo
por que os fantasmas não param de fungar como bobos. Não é para assustar as
pessoas que vieram depois deles. É porque acham dificílimo respirar noutra
época tão diferente. Não é só um lugar na existência que nós temos. Temos um
tempo limitado que nos foi atribuído. É assim, e só posso tomar como ponto de
partida as coisas que agora me rodeiam. Escrevo em Agosto de 1990. Hoje, ou
seja, no dia em que me ler, por certo já terá esquecido a maior parte do que
nós dois vivemos nos meses quentes daquele verão em que tinha três anos e meio.
Mas esses dias continuam pertencendo-nos, e nós ainda podemos passar muitas
horas agradáveis juntos.
Vou contar uma coisa que actualmente
não consigo tirar da cabeça: a cada dia que passa e a cada coisinha à toa que
nós dois fazemos, aumenta a possibilidade de se lembrar de mim. Agora eu conto
as semanas e os dias. Na terça-feira, nós estivemos no alto da torre de
Tryvann, de onde se pode ver a metade do reino, dava para ver até a Suécia. A mãe
também foi, fomos os três. Mas será que se lembra disso? Não pode ao menos
tentar recordar, Georg? Tente, faça um esforço, pois isso tudo está aí, em
algum lugar dentro de… Lembra daquele seu comboio enorme de madeira? Todo o dia
passa horas brincando com ele. Eu estou-o vendo agora. Os trilhos, vagões e balsas
espalhados no chão, exactamente como os deixou há pouco. No fim, eu precisei
fazê-lo largar tudo porque estava na hora de ir ao jardim-de-infância, mas
ainda tenho a impressão de que as suas mãozinhas continuam tocando no
brinquedo. Não tive coragem de tirar um só trilho do lugar». In Jostein Gaarder, A Garota das Laranjas, tradução de Luis Araújo,
Companhia das Letras, 2008, ISBN 978-853-590-712-4.
Cortesia
Cletras/JDACT