«Se
se perguntasse a esse personagem vago, quais foram as três grandes viagens dos
anais dos Descobrimentos, naturalmente responderia sem hesitação: a de Colombo
à América, a de Vasco da Gama à Índia e a de Magalhães à volta da Terra. Todavia,
se procurássemos saber o lugar que cada um desses feitos ocupa na sua estima, é
provável que encontrássemos em primeiro lugar a aventura de Colombo. Uma das
razões disto é que está mais bem informado a respeito dela. A história e a
lenda, muito em especial a lenda, do visionário genovês que atravessou o
Atlântico são familiares a todo o colegial nos seus pormenores principais. Os
outros não tiveram uma propaganda tão grande. Os méritos da circum-navegação
são evidentes, e sempre serão, claro está, reconhecidos; porém, a segunda das
grandes viagens da última década do século XV, apesar de haver sido, na
realidade, a mais difícil e perigosa de todas até então empreendidas, com
frequência tem sido tida em pouca consideração. Fora de Portugal, Vasco da
Gama, para muita gente, não passa de um nome apenas; e, até mesmo onde se sabe um
pouco o que tal nome significa, muitas vezes se lhe têm referido com provas de
ignorância ou de incompreensão. No fim de contas, que fez, na verdade, Vasco da Gama?, é o que se ouve às
vezes perguntar. A Índia não era um continente por descobrir. Já lá haviam
chegado viajantes por terra, de tempos a tempos. O oceano Índico era conhecido
dos navegadores árabes. Vasco da Gama teve só de seguir ao longo da costa da
África até dobrar o Cabo, e na costa oriental houve só que arranjar piloto. Claro
está que foi coisa perfeitamente simples..., ou assim seria se Vasco da Gama
saísse de Lisboa a bordo dum vapor! Mas a rota de um barco à vela não pode
traçar-se em linhas rectas sobre um mapa, mesmo que existisse naquele tempo uma
carta atlântica.
Um
navio à vela deve deixar a costa para buscar o vento, que sopra onde melhor lhe parece nas paragens remotas do oceano. Os alísios
favoráveis podiam levar Colombo às Índias em 36 dias, mas Vasco da Gama, depois
de ter navegado para o Sul durante outro tanto tempo, encontrava-se ainda a
meio do Atlântico, a milhares de milhas de qualquer costa. Não há dúvida de
que, uma vez dobrado o Cabo, a caminho de Moçambique, apenas uma viagem de oito
meses! Os seus navios não se encontravam já em mares desconhecidos. Os
problemas que tinha de resolver eram de outra espécie, tendo ainda neste caso Vasco
da Gama sido julgado com pouca justiça. Alguns escritores, que parecem não se
lembrar da situação internacional dessa época, têm dito que ele não tinha tacto,
que cometeu erros, que só levantou conflitos. Censuram-no por ele se ter
zangado com os mercadores árabes da costa oriental. Mas não eram estes que estavam mais prontos azangar-se com ele?
Que outra coisa poderia esperar-se que acontecesse entre um cristão do século
XV desejoso de expandir o campo de influência da sua terra, e os muçulmanos, que até então haviam sido senhores únicos
do campo? É preciso pormos de parte as nossas opiniões modernas, a
nossa tolerância, o nosso ecletismo suave, a nossa estima pelos sectários de
uma fé pura e viril, temperada pela noção da responsabilidade para com nações
de cultura menos avançada do que a nossa. O século XV não conhecia nenhuma
destas coisas. Para um cristão daquela época, não podia encontrar-se qualquer
espécie de virtude num discípulo do falso Profeta, o abominável Mafoma». In Elaine
Sanceau, Vasco da Gama, O Caminho da Índia, tradução de António Dória,
Civilização Editora, Porto, 2013, ISBN 978-972-263-622-3.
Cortesia
de Civilização/JDACT