quarta-feira, 10 de junho de 2015

Diálogo com a Morte. Marie Hennezel. «É importante respeitar a dignidade daqueles que se aproximam da morte, fazendo-os sentir seres humanos até ao fim, evitando que, por desespero, queiram abreviar os últimos momentos que têm para partilhar…»

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«(…) Num mundo que considera que a boa morte é a morte brutal, se possível inconsciente, ou pelo menos rápida, para não perturbar muito a vida dos que ficam, um testemunho sobre os últimos instantes de vida, sobre o incrível privilégio que pode representar o facto de se testemunhar isso, não me parece supérfluo. Melhor ainda, espero contribuir para a evolução da sociedade. Uma sociedade que, em vez de negar a morte, aprenda a integrá-la na vida. Uma sociedade mais humana na qual, conscientes da nossa condição de mortais, respeitemos mais o valor da vida. Espero conseguir sensibilizar o leitor para a riqueza de uma assistência nos últimos momentos de vida de uma pessoa próxima. Eu própria fui descobrindo essa riqueza no decorrer dos anos. A minha vida viu-se transformada por ela. Morrer não é, como tão frequentemente supomos, um tempo absurdo, desprovido de sentido. Sem diminuir a dor de um percurso feito de lutos, de renúncias, gostaria de mostrar quanto o tempo que precede a morte pode ser simultaneamente o de uma realização da pessoa e da transformação do que a rodeia. Muitas coisas podem ainda ser vividas.
A um nível mais subtil, mais interior, no modo como nos relacionamos com os outros. Quando nada mais resta fazer, podemos ainda amar e sermos amados, e muitos moribundos, no instante de deixarem a vida, nos têm lançado esta mensagem pungente: não passem ao largo da vida, não passem ao largo do amor. Os últimos instantes da vida de um ser amado podem constituir a ocasião de ir o mais longe possível com essa pessoa. Quantos de nós aproveitam essa ocasião? Em lugar de olhar de frente a real proximidade da morte, fazemos de conta que ela não vai chegar. Mentimos ao outro, mentimos a nós próprios e, em vez de dizer o essencial, em vez de trocarmos palavras de amor, de gratidão, de perdão, em vez de nos apoiarmos uns aos outros para atravessar esse momento incomparável que é o da morte de um ser amado, pondo em comum toda a sageza o humor e o amor de que o ser humano é capaz para enfrentar a morte, em vez de tudo isso, esse momento único, essencial da vida, é rodeado de silêncio e solidão. Este estudo é o fruto de sete anos de experiência junto de pessoas próximas da morte, que vieram terminar as suas vidas numa unidade hospitalar parisiense de cuidados paliativos. É ainda o fruto de vários anos de diálogos com pessoas seropositivas, ou com doentes de sida hospitalizados num serviço de doenças infecciosas. Foi elaborado no decorrer da minha própria reflexão, bem como da dos meus próximos e amigos.
Estou à cabeceira de ‘Bernard’. Gemeu baixinho, e a sua mão veio abrigar-se na minha. Meu anjo, murmurou, com uma incrível ternura. ‘Bernard’ está a morrer de sida e a viver os seus derradeiros dias na unidade de cuidados paliativos onde trabalho. Bernard é um amigo. Tem apenas quarenta anos. A doença afundou-lhe os traços e descarnou-lhe o corpo, mas conserva sempre a mesma juventude e a mesma beleza regular no seu rosto. E essa beleza, preservada mau grado tudo, tão frágil, tão vulnerável, comove-me. Como nos tínhamos prometido, aqui estou a seu lado, nesta vigília paciente e afectiva que se chama acompanhamento. Há quinze dias, interrompi as minhas férias para fazer uma vigília à sua cabeceira. Ele sentia que ia morrer em breve, e eu também sentia que era preciso vê-lo sem demora. Era uma evidência que jorrava do fundo da alma. Assim, passei o dia 15 de Agosto com ele, num clima de verdade e ternura que actualmente faz parte do tesouro de recordações felizes que trago dentro do coração. Agora que regressei definitivamente das minhas férias, e que ele se encontra num estado de fraqueza aponto de já quase não conseguir falar, sinto-me feliz por ter experimentado esta necessidade de vê-lo, enquanto podia ainda comunicar através da palavra». In Marie Hennezel, Diálogo com a Morte, Editorial Notícias, colecção Ciência Aberta, Lisboa, 1997/2002, ISBN 972-460-793-3.

Cortesia de ENotícias/JDACT