Literatura de Corte:
Cantigas de Santa Maria e Cantigas de
Maldizer e D’escarno
«(…) Como fora
antecipado no título e no refrain, o vexame
do galanteador é, pelo contrário, usado na cantiga com uma função exemplar,
para comprovar que o erotismo e a devoção são incompatíveis, salvo para quem,
como Afonso,
pratica igualmente ambas as coisas, com feliz incoerência. O que não terá
escapado é, de qualquer modo, o indubitável valor narrativo dos textos examinados,
tanto o das cantigas devotas como o da satírica. Se se reconhece a importância
da função narrativa nas Cantigas de Santa Maria (fê-lo recentemente
Marsan, dedicando um largo espaço a estas composições), o mesmo deve ser feito,
porém, com as numerosas cantigas de maldizer e d’escarnho, que
nos oferecem originais formas de conto. Muitas vezes, com efeito, estes textos
baseiam-se em verdadeiros episódios anedóticos ou factos de crónica miúda,
narrados de maneira directa e com singela mas expressiva brevidade. Começam com
uma descrição e concluem com um escárneo, um dito de espírito ou um compasso
pungente e lascivo. Trata-se, pois, duma forma intermédia entre o clássico
epigrama e o género literário da facécia humanística, em que o tempo narrativo
(o presente, adoptado para sublinhar a novidade
do facto narrado; o imperfeito, para marcar a continuidade sob o aspecto da
duração) assume grande relevo, juntamente com os jogos onomásticos e geralmente
verbais. É uma forma tipicamente ibérica, sobretudo se pensarmos em Marcial,
cujos epigramas apresentam significativas analogias com esses textos
(multiplicidade dos motivos líricos,
mas presença forte do conto; grande variedade de formas e de metros; amplificatio
que culmina no exploit da conclusão, etc.).
Experimentemos ler, por
exemplo, a descrição das desventuras duma viagem de Ayras Nunes, o
clérigo cortesão de Sancho IV. O início exprime magistralmente a atmosfera de
medo que antecede um acontecimento infausto:
O meu senhor, o bispo,
na Redondela, un dia,
de noite, con gran medo
de desonra, fogia…
O pobre clérigo vê-se
deste modo obrigado, embora contrariadamente, a seguir o seu protector,
suportando as desastrosas consequências do mau encontro que o espera pontualmente
na noite. Os malandrins começam por aliviar o poeta da sua mula:
achei ũa companha assaz
brava e crua,
que me deceron logo de
cima da mia mua…
E tendo-o despido,
deixam-no nu no meio da rua:
Ali me desbullaron do
tabarro e dos panos
e non ouveron vergonha
dos meus cabelos canos,
nen me deron por ende
graãs nen adianos;
leixaron-me qual fui
nado no meio de la rua.
Atenção, porém: a
referência ritual de Ayras Nunes aos seus cabelos brancos é polivalente e, pela
insistente autocomiseração, claramente dirigida no sentido de obter uma compensação,
que extravasa os limites da sátira. Ao ver-se nu e descomposto na rua, o poeta
não consegue evitar um riso irónico; e um rapazola tinhoso que assistira à cena
injuria-o chamando-lhe velho maricas!
E un rapaz tinhoso, que
o Deus poren [ d ]estrua!
chamava-mi Mia nona, velha fududancua!
Confrontemos a cantiga
com um trecho duma novela do Decameron que descreve uma aventura
análoga: … Estes três, vendo a hora
tardia e o lugar ermo e fechado, assaltaram-no e roubaram-no, deixando-o a pé
em camisa, e dizendo ao partir: Vai e vê se o teu S. Julião te dá esta noite
uma boa hospedaria, que o nosso bem no-la dará…. Em ambos os textos estão
presentes os mesmos elementos fabulares (a hora tardia que surpreende o herói
em viagem; o encontro com os malfeitores; a situação ridícula do protagonista, abandonado
nu no meio da rua; as palavras de escárneo dos bandidos); mas, enquanto o
novelista se serve destes elementos para introduzir a verdadeira história que é
a do perfeito acolhimento, completo
em todos os aspectos, que Rinaldo recebeu graças ao seu pai-nosso em honra de S.
Julião, na cantiga a fábula conclui-se aqui. A bela sentença, que é um elemento subsidiário na novela, torna-se
assim a finalidade da anedota, toda ela construída em função do remate. Não se
pode negar, porém, que a cantiga nos oferece um autêntico conto, à altura, por
exemplo, duma pequena novela de Sacchetti ou duma facécia de Poggio
Bracciolini.
E não faltam nas cantigas os trechos em que os poetas afirmam
explicitamente a sua intenção de contar. Assim acontece por exemplo com Pero da
Ponte, D’un tal ricome vos quero contar…, com Joan Vásquez, Direi-vos
ora que oí dizer…, ou com Joan Lobeira quando, retomando com elegância o velho
tema do mundo virado às avessas, nos fala dum cavaleiro todo ao contrário: Um cavaleiro á qui tal entendença / qual vos eu agora quero contar…,
enquanto num contexto semelhante Martin Moxa adopta o verbo novelar». In Luciano Rossi, A Literatura Novelística
na Idade Média Portuguesa, Instituto de Cultura Portuguesa, CV Camões,
Instituto Camões, volume 38, série Literatura, 1979.
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