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Sobre o Descobrimento da América. Uma pedra e um mapa I
Começarei pela pedra com inscrições, que é uma fantasia relativamente
recente sobre o descobrimento do nordeste da América do Norte, com honras de
museu, que merecia em termos diferentes, e também com honras de réplicas, que
de modo algum merece com o significado que lhe dão; iremos ver porquê. O
rochedo, matéria de acesa e longa polémica, encontrava-se numa das margens do
rio Tauton, mas de facto foi removido há anos para o Dighton Rock Museum, de
mistura com objectos associados com os Descobrimentos
portugueses, em parte ofertas do Museu da Marinha de Lisboa e em parte
dádivas da Fundação Calouste Gulbenkian; isto diz-nos o médico português
emigrado naquela área dos Estados Unidos, Manuel Luciano Silva, que tem
sido um estrénuo defensor da teoria de a pedra ser um testemunho irrecusável da
presença naquelas terras americanas, durante pelo menos quase uma década, do
infeliz navegador Miguel Corte Real. Com persistência e convicção
notáveis, mas também dignas de causa com melhores raízes, tem publicado folheto
após folheto, escrito carta sobre carta a sucessivos governantes do nosso país,
pronunciando palestra atrás de palestra em rádios lusófilas do estado americano
em que se radicou (e em que vivem inúmeros portugueses) e indo até ao limite de
romper relações pessoais com quem põe sérias dúvidas em decifrar no pedregulho o
que ele lá teima em ler e ver. Como se divergências de leituras epigráficas
tivessem alguma coisa a ver com o possível convívio amável entre os que vivem a
mesma época e falam a mesma língua materna.
E, no entanto, a celebridade da pedra de Dighton não começou por
diligências deste médico beirão; iniciou-se até uns dez anos antes de ele ter
nascido. De facto, Edmund Delabarre, professor da Brown University, e
por sinal professor de Psicologia, interessado nas inscrições gravadas em pedras
da região, publicou em 1916 um
primeiro artigo sobre o rochedo do rio Tauton e o emaranhado das
inscrições que nele se desenharam; outros artigos seus se seguiram, e a teoria, sobre a pedra acabou por ser
exposta num volumoso livro (360 páginas) intitulado The Dighton Rock, que
saiu a lume em 1928 na cidade de
Nova Iorque. Delabarre teve a princípio naturais perplexidades perante
os traços entrecruzados e sobrepostos do rochedo; e quem quer que o tenha visto
(vi-o ainda junto do rio Tauton há muitos anos) logo compreende as dúvidas
iniciais do professor americano; dúvidas que também então me assaltaram, e, o
que é mais sério, igualmente intrigaram peritos em epigrafia; não o sou, nem o
era Delabalre, nem o é, que eu saiba, Manuel Luciano Silva.
Perante essas dificuldades lembrou-se Delabarre de fotografar a pedra iluminada
artificialmente; penso que com diversas luzes, e estou certo que de vários
ângulos de incidência; entre as muitas fotografias feitas, algumas foram
colhidas quando no traçado fez incidir uma luz rasante. Isto foi realizado em
meados de 1918, e marcou o ponto de
partida de uma contenda histórica, que devia estar encerrada há muito tempo,
mas continua viva, e agora com pompa, graças à teimosia daquele nosso compatriota.
Metido em casa com as suas fotografias, Edmund Delabarre começou a procurar
nelas a confirmação de ideias que o perseguiam, ou seja, a ver no conjunto de
traços rectilíneos e curvilíneos das mais variadas formas, que tinha na sua
frente, o que desejava ver. Seja-me
permitida aqui uma reflexão à margem. Em qualquer ciência, mesmo a mais ligada
à parte experimental (e muitas vezes não é bem claro para mim onde se encontra
a raia de demarcação entre o teórico e o experimental…), em qualquer ciência,
ia dizendo, parte-se naturalmente de hipóteses, que análises insistentes e
repetidos ensaios confirmam ou desmentem; e os ensaios frustrados serão decerto
em muito maior número do que os resultados espantosos (haja em vista o
extraordinário número de experiências inconsequentes sobre o cancro!), sem
esquecer que os positivos muitas vezes se devem a um acaso feliz (estou a
lembrar-me, é claro, de Fleming e da sua descoberta da penicilina!). Se um
cientista falha, volta ao princípio e retoma as suas experiências noutro
sentido, tendo de ser corajoso e repetir o caminho tantas vezes quantas as
necessárias para chegar a algum resultado, ou morrer sem lamentavelmente ter
contribuído com qualquer novidade, por ínfima que seja, para a ciência por si
cultivada. Nenhum mal vem daí ao mundo, para além do lamentável tempo perdido
pelo cientista fracassado.
Todavia, no caso em que o homem de ciência, obcecado pelas suas ideias
a priori, falseia os resultados, ou
supõe lícito interpretá-los abusivamente de modo favorável ao seu ponto de
vista (e neste caso nem sempre haverá desonestidade…), então criam-se problemas
muito graves que chegam a ter repercussões de ordem social e de ordem política
(claro: estamos todos a lembrar-nos de Lissenko!) Em História também assim é,
evidentemente: perante um conjunto de acontecimentos ou até de um simples facto
isolado (no caso vertente, a descoberta da pedra de Dighton, coberta de sinais
variados), é lícito colocar hipóteses, mas é ilícito forçar tudo e usar de
batota para que elas se confirmem, por muito que tais hipotéticas conclusões
forçadas sejam gratas à nossa perspicácia e à nossa argúcia». In
Luís de Albuquerque, Dúvidas e Certezas na História dos Descobrimentos
Portugueses, colecção Documenta Histórica, Vega, Lisboa, 1990,
ISBN-972-699-258-3.
Cortesia de Vega/JDACT