segunda-feira, 15 de junho de 2015

Poesia. Teorema. Pier Paolo Pasolini. «As mães como mães de aves nas pequenas casas burguesas entrelaçam o jasmim do ar com o significado da luz privada de uma família, e do seu lugar numa nação cheia de comemorações»

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Os primeiros que se amam...
«Os primeiros que se amam
são os poetas e os pintores da geração anterior,
ou do início do século; tomam
no nosso espírito o lugar dos pais, permanecendo,
porém, jovens, como nas suas fotografias amarelecidas.
Poetas e pintores para quem ser burguês não era vergonha.
Filhos em vicunha e feltros...
ou pobres gravatas com gosto a rebelião e a mãe.
Poetas e pintores que se tornariam famosos
em meados do século,
com alguns amigos desconhecidos de grande valor,
mas, talvez por receio, impróprio para a poesia
(poeta verdadeiro morto fora dos anos).
Calçadas de Viena ou de Viareggio! Marginais dos rios
de Florença ou Paris!
Ressoando com aqueles pés de filhos
calçados com sapatos grossos.
O ímpeto da desobediência cheira a cíclame
sobre as cidades aos pés dos poetas jovens!
Os poetas jovens que conversam
depois de uma infame golada de cerveja,
como burgueses, independentes,
locomotivas abandonadas mas ardentes
forçadas durante algum tempo às linhas cegas,
usufruindo da falta de pressa da juventude:
convencidos de poder mudar o mundo purulento
com quatro palavras apaixonadas e o apelo da rebeldia.
As mães como mães de aves
nas pequenas casas burguesas
entrelaçam o jasmim do ar
com o significado da luz privada de uma família,
e do seu lugar numa nação cheia de comemorações.


As noites, assim, fazem ecoar apenas os passos dos rapazes.
A melancolia possui infinitos esconderijos
infinitas como as estrelas,
em Milão ou numa outra cidade,
de onde sopra o seu bafo de ar aquecido.
Os passeios correm ao longo de casas setecentistas,
casas descodeadas com destinos sacrossantos
(estradas de aldeia transfigurada em cidade industrial),
com um longínquo odor românico de estábulos gelados.
É assim que os poetas jovens fazem experiência do viver.
E têm para dizer o que dizem os outros,
os jovens-não poetas (também eles senhores da vida e da inocência)
com mães que cantam
nas pequenas janelas dos pátios internos
(buracos fedorentos para as estrelas que não se vêem).
Onde se perderam aqueles passos!
Não basta uma escrupulosa e breve página de memórias,
não, não basta, talvez apenas o poeta não poeta,
ou o pintor não pintor,
morto antes ou depois de uma guerra, em qualquer
cidade das legendárias deslocações,
encerre em si aquelas noites, com verdade.
Ah, aqueles passos, dos filhos
das melhores famílias da cidade (aquelas
que seguem o destino da nação
como uma horda de animais segue o odor,
aloê, canela, beterraba, cíclame
na sua migração, aqueles passos de poetas
com os amigos pintores, que percorrem as calçadas,
falando, falando...
Mas se este é o esquema, outra é a verdade.
Reproduz, filho, aqueles filhos.
Sente nostalgia deles, mesmo aos dezasseis anos.
Mas percebe desde logo
que ninguém fez revoluções antes de ti;
que os poetas e os pintores velhos ou mortos,
apesar do ar heróico sob a auréola em que os envolveste,
são-te inúteis, nada te ensinam.
Goza as tuas primeiras ingénuas e teimosas experiências,
tímido agitador, dono das noites livres,
mas lembra-te que estás aqui só para ser odiado,
para derrubar e matar».

In Pier Paolo Pasolini, Teorema, 1968, 1991, 1994, Quasi Edições, tradução de Ana Tanque, biblioteca Metamorfose, 2005, ISBN 989-552-105-7.

Cortesia de QuasiEdições/JDACT