Londres e Kimbolton. Outono de 1535
«(…) Estão a voltar para Londres vagarosamente, de modo que na altura
em que o rei chegue à cidade esta esteja livre de qualquer suspeita de peste.
Em frias capelas votivas, sob o olhar de virgens estrábicas, o rei reza
sozinho. Não gosta de rezar sozinho. Quer saber o que está a pedir; o seu velho
mestre, cardeal Wolsey, teria sabido. As suas relações com a rainha, enquanto o
verão avança e se aproxima do seu termo oficial, são cautelosas, incertas e
carregadas de desconfiança. Anne Boleyn tem agora trinta e quatro anos de idade,
uma mulher elegante, com um refinamento que faz parecer redundante a simples
beleza. Em tempos sinuosa, tornou-se angular. Conserva o seu sombrio
resplandor, agora um pouco gasto, a lascar nalguns pontos. Usa com belo efeito
os seus olhos escuros proeminentes, desta maneira: olha de relance o rosto de
um homem, depois o seu olhar desvia-se, como despreocupado, indiferente. Há uma
pausa: como quem diz, um respiro. Depois lentamente, como compelida, volta de
novo o olhar para ele. Os seus olhos repousam no rosto dele. Examina esse
homem. Examina-o como se fosse o único homem do mundo. Parece que o está a ver
pela primeira vez e a considerar toda a espécie de usos que lhe pode dar, toda
a espécie de possibilidades em que ele próprio nem sequer pensou. Para a sua vítima,
o momento parece durar uma eternidade, durante a qual lhe correm arrepios pela
espinha acima. Embora, na verdade, o truque seja rápido, barato, eficaz e
repetível, parece ao pobre homem que se distingue agora entre todos os homens.
Sorri satisfeito. Enfeita-se. Fica um pouco mais alto. Fica um pouco mais tolo.
Ele já viu Anne aplicar o seu truque a lordes e vilões, ao próprio rei. Vemos
como o homem um pouco boquiaberto se torna criatura sua. Funciona quase sempre;
nunca funcionou com ele. Ele não é indiferente às mulheres, sabe Deus, apenas
indiferente a Anne Boleyn. Isso irrita-a; ele devia ter feito de conta. Ele
fê-la rainha, ela fê-lo ministro; mas agora estão desconfortáveis, ambos
vigilantes, a observarem-se um ao outro à espera de um deslize que traia um
sentimento verdadeiro e assim dê vantagem a um ou ao outro: como se apenas a
dissimulação os mantenha em segurança. Mas Anne não tem jeito para esconder os
seus sentimentos; é a querida mercurial do rei, escorregando e deslizando da
cólera ao riso. Houve alturas este verão em que ela lhe sorria secretamente por
trás das costas do rei, ou lhe fazia caretas para o prevenir de que Henry
estava destemperado. Noutras alturas ignorava-o, virava-lhe as costas, os seus
olhos negros a varrer a sala e a descansar alhures.
Para compreender isto, se é susceptível de compreensão, temos de voltar
atrás à última primavera, quando Thomas More ainda estava vivo. Anne tinha-o
convocado para falar de diplomacia: o tema era um contrato de casamento, um
príncipe francês para a sua filha criança Elizabeth. Mas os franceses
revelavam-se ariscos na negociação. A verdade é que, mesmo agora, não concedem
totalmente que Anne seja rainha, não estão convencidos de que a sua filha seja
legítima. Anne sabe o que está por trás da relutância deles e de alguma maneira
é culpa dele, de Thomas Cromwell. Tinha-o acusado de a estar a sabotar
abertamente. Ele não gostava dos franceses e não queria a aliança, pretendia
ela. Não evitara ele uma oportunidade de cruzar o mar para conversações cara a
cara? Os franceses estavam totalmente dispostos a negociar, diz ela. E estavam
à vossa espera, senhor secretário. E dissestes que estáveis doente e teve de ir
o senhor meu irmão. E fracassou, tinha suspirado ele. Muito infelizmente. Conheço-vos,
disse Anne. Nunca estais doente, pois não, a menos que seja vosso desejo? E
além disso apercebo-me de como as coisas estão em relação a vós. Pensais que
quando estais na cidade e não na corte não estais debaixo do nosso olho. Mas eu
sei que sois amistoso de mais com o homem do imperador. Estou ciente de que Chapuys
é vosso vizinho. Mas é isso razão para que os vossos criados estejam sempre a
entrar e a sair da casa um do outro?
Anne vestia, nesse dia, de cor-de-rosa-claro e cinzento-pomba. As cores
deviam ter tido um fresco encanto juvenil mas não conseguiu pensar senão em
entranhas estendidas, miúdos e tripas, intestinos de um rosa acinzentado a sair
em rolos de um corpo vivo; tinha um segundo carregamento de frades
recalcitrantes a despachar para Tyburn, para serem abertos e esventrados pelo
carrasco. Eram traidores e mereciam a morte, mas é uma morte que excede a maioria
em crueldade. As pérolas à volta do pescoço dela pareciam-lhe pequenas contas
de gordura e enquanto ela argumentava ia levando lá a mão e puxando por elas;
ele mantinha os olhos nas pontas dos seus dedos, as unhas faiscando como
pequenos punhais. No entanto, como ele diz a Chapuys, enquanto estiver no favor
do rei, duvido que a rainha me possa fazer algum mal. Tem os seus despeitos,
tem as suas raivinhas; é volátil e Henry sabe-o. Foi o que fascinou o rei,
encontrar alguém tão diferente daquelas loiras suaves, amáveis, que vagam
através da vida dos homens e lá não deixam qualquer marca. Mas agora quando
Anne aparece ele parece incomodado. Vê-se o seu olhar tornar-se distante quando
ela começa um dos seus arrazoados e se ele não fosse tão cortês enterraria o
chapéu por cima das orelhas». In Hilary Mantel, Bring Up the Bodies, 2012,
O Livro Negro, Civilização Editora, Porto, 2013, ISBN 978-972-26-3594-3.
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