«(…) O presente estudo
circunscreve-se à função que a referência budista desempenha na obra de Dalila
que tem como tema e objectivo a apresentação de um pensamento original e
próprio, de tipo especulativo e traços místicos sobre a Saudade. Como veremos, tal
referência encontra-se marcada por ambiguidades e configura a construção de um
neobudismo, isto é, o estabelecimento de uma atitude mental denominada como
budismo, que é utilizada como contraponto daquilo que se quer afirmar. Esta atitude
filosófica tem sido já denunciada por diversos intérpretes que alertam para o curioso
facto de, no preciso momento histórico em que no Ocidente se começavam a conhecer,
em círculos especializados de sábios e tradutores os primeiros textos budistas,
alguns filósofos terem começado a delimitar e definir um neobudismo, de tipo niilista,
que pouca relação tinha com esses textos ou com a própria realidade da prática budista
oriental. Para Dalila Pereira da Costa, a saudade necessariamente subentende
um núcleo perene, um eu incólume como Eu, que através de todas as suas
metamorfoses atravessando tempo e espaço, as liga e ligando-as, mostra ou
demonstra, e ainda justifica, como causa e efeito, a identidade desse eu
vivente. Em trânsito sobre a terra. A autora confere assim ao Eu profundo um
estatuto de essência, superando as contingências de um ser em trânsito. Radicalizando
desde logo o seu discurso, a primeira atitude filosófica exterior à sua própria
que a autora convoca é, como já vimos, justamente o budismo: A saudade será a mais potente força de oposição no
Ocidente à descontinuidade budista do eu no Oriente. É só pela saudade que
se poderá aceder a um eu perene e essencial, irredutível a todas as
transformações por que passa o eu aparente que atravessa múltiplas condições e
estados de ser e de consciência, a saudade seria assim uma força de vitória
sobre o tempo, imagem humana da transformação derradeira na sua realidade vera:
a eternidade. A saudade pode assim ser teologicamente considerada como uma
via medial, via de salvação pelo conhecimento e ascese, (...) impregnação
da terra pelo céu e do tempo pela eternidade, como união recíproca, na final
identidade.
A autora denuncia que o
existencialismo ocidental e o Budismo oriental convergiriam no niilismo,
caracterizado pela angústia e desespero e por propor uma fuga perante a vida.
A esta fuga opor-se-ia a acção saudosa que venceria tempo e espaço, o devir e o
sofrimento que lhe é inerente, operando a superação e libertação do humano
mediante uma assunpção mais completa da vida, do mundo e de si próprio: Só
aqui na Terra, nesta orla atlântica da Península, a alma do homem teria
assumido integralmente, e amoravelmente, o tempo, para o ultrapassar. A
libertação seria possibilitada, propiciada e suscitada pela própria fidelidade
à terra e sua paixão, pretensamente oposta à fuga mundi própria
do niilismo budista. E Portugal, a cultura
portuguesa e a proposta e experiência da Saudade seria talvez o ponto
dialéctico de oposição e resolução, em união de complementaridade, de primeiro
e último, do Oriente e do Ocidente, aqui achado e elevado na terra dos homens.
Dalila procura assim refutar o
Budismo nos seus traços mais essenciais, isto é, reduzindo-o a características
tão esquemáticas que o desfiguram até se tornar irreconhecível. Contudo, movida
por um genuíno ecumenismo e ao valorizar a sabedoria portuguesa como um meio de
libertação, estatui a saudade
como um meio de libertação, a par das experiências espirituais orientais,
valorizando-as assim indirectamente. Prosseguindo este desígnio, a autora
utiliza até um vocabulário retirado dessas tradições com o objectivo expresso
de destacar a original especificidade da Saudade, como que implicitamente
pressupondo e declarando que o recurso às tradições orientais seja indispensável
ao conhecimento aprofundado do que mais importaria na cultura portuguesa.
Este paradoxo ou ambiguidade é
reforçado pelo reconhecimento de que há características na cultura portuguesa
que se encontram em frontal oposição à tradição europeia. Ao discorrer sobre a
saudade, Dalila define-a como uma das mais altas experiências espirituais dadas
à humanidade, só que, diferentemente da mítica e da poética, acessível,
enquanto via de salvamento a todo um povo, continuadamente ao longo de sua longa
história. Todos os tipos de conhecimento espiritual seriam assim formas de
prospecção e união com o divino, o transcendente e o mistério. A saudade seria
assim um conhecimento que faz participar na realidade suprema. Essa
participação é vivenciada como uma forma de alegria em toda a sua força de
libertação, revelando que a verdadeira realidade do mundo é isenta de devir,
mudança e sua dor, mas que persiste e subsiste dela incólume. A saudade é
assim definida como um poder de revelação da eternidade. Dalila vê os textos
portugueses impregnados de saudade como elementos não menosprezáveis do
mais precioso património espiritual da humanidade, a par de outros documentos que
dão conta de outras experiências espirituais libertadoras, em outras tradições,
tempos históricos e localizações geográficas, testemunhos da vida imortal». In
Rui Lopo, A leitura do Budismo na obra de Dalila Pereira da Costa, Estudos,
Universidade de Lisboa, Associação Agostinho da Silva, Revista Lusófona de
Ciência das Religiões, Ano VI, 2007.
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