«É com esta
irresistível vontade de redescoberta, ou mesmo de pulverização das imagens
sobre que tão preguiçosamente temos fundado as nossas apostas ou encolher de
ombros, sem esquecer as mais incisivas do nosso jovem cinema, que me sinto sintonizado,
enquanto herdeiro e caminhante paralelo de outras tentativas, acaso menos
radicais, mas significativas da vontade de repensar a sério e a fundo uma
realidade tão difícil de aprender como a portuguesa (também não deixa de ser
sintomática a revisitação do sebastianismo através de reflexões ou obras
literárias de diversa índole, desde Joel Serrão e João Medina a Natália Correia,
e recentemente, em termos esotéricos, aliás, de bem diversa configuração,
visões do itinerário pátrio como no de António Telmo e Dalila Pereira Costa).
Que outra oferece ao mais desprevenido exame esta dupla e, na aparência,
insolúvel particularidade: a de nos parecer a todos ao mesmo tempo tão simples,
tão desarmante e aproblemática, a pontos de corresponder à ideia idílica da
vida e da sociedade portuguesa, tantas vezes ilustrada por nacionais e estrangeiros;
e tão labiríntica e complexa apesar ou por causa dessa rasura impossível, mas
tão bem sucedida, de uma ausência de tragédia, ressentida a cada geração como a
mais refinada e incomunicável das tragédias? Embora pensado e escrito fora de
Portugal este livro não vem do que é moda designar como Diáspora e muito menos de qualquer lugar ou situação que o autor
pressinta como exílio. Da Diáspora
não procede porque nunca houve nem há Diáspora
alguma que toque os Portugueses. Nenhum Tito incendiou jamais o Templo-Portugal
obrigando-nos à força a dispersar-nos pelos quatro cantos do universo. A nossa
dispersão ao longo dos séculos e em particular o êxodo contemporâneo são de
nossa exclusiva responsabilidade, determinados pela pressão secular de uma
indigência pátria a compensar, ou por uma vontade bandeirante de aceder à custa
de outros a melhor vida. Tudo o resto é fábula. A única diáspora da nossa
história foi aquela que por pressão da catolicíssima Espanha impusemos em
tempos aos nossos judeus, diáspora atroz e relativamente benigna para que
séculos mais tarde os herdeiros das vítimas se orgulhem diante de Voltaire da
sua antiga condição de portugueses. Diáspora miraculosa também; pois deu ao
mundo Beneditus Espinosa...
Também
este livro não é de exílio nem de exilado que a nenhum título o seu autor foi
nunca. Digamos que é o discurso de um ausente por motivos que só a ele dizem
respeito, mas que nada têm a ver com as exalações de exilados imaginários de
uma pátria não menos imaginariamente ingrata. Os autênticos exilados, em
Portugal, à parte o momento da reacção miguelista, foram sempre poucos,
exceptuando aqueles combatentes da sombra que por natureza se destinavam a sê-lo,
sem pensar mais tarde em dependurar o duro exílio aceito na lapela da alma.
Exílio verdadeiro, o autor destas reflexões só o conheceu no interior do seu
país, como muitos outros seus camaradas e contemporâneos, e dessa experiência
procede sem dúvida a raiz última do interesse obsessivo para ver claro na realidade
do povo a que pertence e para compreender a estrutura desse silêncio que
periódica, se não em permanência, coage do interior o diálogo sempre precário
da cultura portuguesa consigo mesma. Felizmente que os ventos mudaram, e que a
muralha visível desse silêncio orgânico ruiu, embora as pedras mortas dessa
resistente Jericó tenham encontrado já cabouqueiros ávidos de as reutilizar na
construção de um outro ou similar Silêncio. Pela força das coisas, todos os
textos deste livro foram escritos e pensados fora de Portugal, se é que este fora tem algum sentido pertinente em
relação ao objecto que nele se aborda. Talvez por isso, e uma vez mais, as boas
almas baptizem estas considerações com o labéu de estrangeiradas. Não é apodo
que as humilhe, mas não o creio exacto». In Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade,
Psicanálise Mítica do Destino Português, Gradiva, Lisboa, 2000, ISBN
978-972-662-765-4.
Cortesia
Gradiva/JDACT