segunda-feira, 8 de junho de 2015

O Labirinto da Saudade. Eduardo Lourenço. «… diáspora atroz e relativamente benigna para que séculos mais tarde os herdeiros das vítimas se orgulhem diante de Voltaire da sua antiga condição de portugueses. Diáspora miraculosa também; pois deu ao mundo Beneditus Espinosa...»

jdact

«É com esta irresistível vontade de redescoberta, ou mesmo de pulverização das imagens sobre que tão preguiçosamente temos fundado as nossas apostas ou encolher de ombros, sem esquecer as mais incisivas do nosso jovem cinema, que me sinto sintonizado, enquanto herdeiro e caminhante paralelo de outras tentativas, acaso menos radicais, mas significativas da vontade de repensar a sério e a fundo uma realidade tão difícil de aprender como a portuguesa (também não deixa de ser sintomática a revisitação do sebastianismo através de reflexões ou obras literárias de diversa índole, desde Joel Serrão e João Medina a Natália Correia, e recentemente, em termos esotéricos, aliás, de bem diversa configuração, visões do itinerário pátrio como no de António Telmo e Dalila Pereira Costa). Que outra oferece ao mais desprevenido exame esta dupla e, na aparência, insolúvel particularidade: a de nos parecer a todos ao mesmo tempo tão simples, tão desarmante e aproblemática, a pontos de corresponder à ideia idílica da vida e da sociedade portuguesa, tantas vezes ilustrada por nacionais e estrangeiros; e tão labiríntica e complexa apesar ou por causa dessa rasura impossível, mas tão bem sucedida, de uma ausência de tragédia, ressentida a cada geração como a mais refinada e incomunicável das tragédias? Embora pensado e escrito fora de Portugal este livro não vem do que é moda designar como Diáspora e muito menos de qualquer lugar ou situação que o autor pressinta como exílio. Da Diáspora não procede porque nunca houve nem há Diáspora alguma que toque os Portugueses. Nenhum Tito incendiou jamais o Templo-Portugal obrigando-nos à força a dispersar-nos pelos quatro cantos do universo. A nossa dispersão ao longo dos séculos e em particular o êxodo contemporâneo são de nossa exclusiva responsabilidade, determinados pela pressão secular de uma indigência pátria a compensar, ou por uma vontade bandeirante de aceder à custa de outros a melhor vida. Tudo o resto é fábula. A única diáspora da nossa história foi aquela que por pressão da catolicíssima Espanha impusemos em tempos aos nossos judeus, diáspora atroz e relativamente benigna para que séculos mais tarde os herdeiros das vítimas se orgulhem diante de Voltaire da sua antiga condição de portugueses. Diáspora miraculosa também; pois deu ao mundo Beneditus Espinosa...
Também este livro não é de exílio nem de exilado que a nenhum título o seu autor foi nunca. Digamos que é o discurso de um ausente por motivos que só a ele dizem respeito, mas que nada têm a ver com as exalações de exilados imaginários de uma pátria não menos imaginariamente ingrata. Os autênticos exilados, em Portugal, à parte o momento da reacção miguelista, foram sempre poucos, exceptuando aqueles combatentes da sombra que por natureza se destinavam a sê-lo, sem pensar mais tarde em dependurar o duro exílio aceito na lapela da alma. Exílio verdadeiro, o autor destas reflexões só o conheceu no interior do seu país, como muitos outros seus camaradas e contemporâneos, e dessa experiência procede sem dúvida a raiz última do interesse obsessivo para ver claro na realidade do povo a que pertence e para compreender a estrutura desse silêncio que periódica, se não em permanência, coage do interior o diálogo sempre precário da cultura portuguesa consigo mesma. Felizmente que os ventos mudaram, e que a muralha visível desse silêncio orgânico ruiu, embora as pedras mortas dessa resistente Jericó tenham encontrado já cabouqueiros ávidos de as reutilizar na construção de um outro ou similar Silêncio. Pela força das coisas, todos os textos deste livro foram escritos e pensados fora de Portugal, se é que este fora tem algum sentido pertinente em relação ao objecto que nele se aborda. Talvez por isso, e uma vez mais, as boas almas baptizem estas considerações com o labéu de estrangeiradas. Não é apodo que as humilhe, mas não o creio exacto». In Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino Português, Gradiva, Lisboa, 2000, ISBN 978-972-662-765-4.

Cortesia Gradiva/JDACT