«Foi
um momento déjà-vu. De visita à minha
mãe, na sua casa de Montana, eu saíra sozinha num domingo de manhã, enquanto
ela e a minha filha tinham ido nadar pouco passava das onze horas quando
passeava pelo centro comercial. A maior parte das lojas ainda não estava aberta
e, por conseguinte, o amplo recinto estava escuro, apenas iluminado pelas luzes
de segurança. De repente, avistei-a. A uma certa distância, diante de mim, ao fundo
da zona comercial, lá estava ela à sombra de um enorme vaso de plantas. Usava
longos cabelos desgrenhados que lhe caíam sobre os ombros e uma franja que
quase lhe tapava os olhos; os seus lábios grossos e sensuais sobressaíam numa
expressão dramática. Estava de pé e tinha os braços firmemente cruzados diante
do peito, os ombros erguidos e uma expressão de desafio no rosto; e, no
entanto, havia algo de doloroso naquela ferocidade. Desconfio que ela já sabia
que não ia vencer. Eu encontrava-me ao fundo da zona comercial quando a detectei,
mas reconheci-a tão depressa que a adrenalina me encheu as veias. Sheila.
Uns
segundos mais tarde, recuperei o raciocínio. Não era Sheila, naturalmente.
Tinham passado mais de vinte anos desde que assistira à partida de Sheila da
minha sala de aula, naquela tarde quente de Junho. Já, não sou a jovem
professora impetuosa que era na altura. Os meus dias de ensino, pelo menos por
agora, tinham ficado para trás e eu passei da juventude, com alguma relutância,
para a meia-idade. Ainda assim, durante aqueles breves instantes no centro
comercial, foi como se os anos não tivessem passado. Fui remetida para a década
de setenta, quando estava viciada no trabalho, entre os vinte e os trinta anos
de idade, voltando a sentir-me, ainda que fugazmente, como a pessoa que tinha
sido, e a ver o mundo tal como ele era nessa época. Depois, a realidade começou
a impor-se, abafando o incidente, tal como quando estendemos uma película
transparente sobre uma página. Aproximei-me da rapariga com curiosidade e
coloquei-me ao lado dela, fingindo-me interessada na montra de uma loja perto
de nós, de modo a poder observá-la discretamente. Era mais velha do que Sheila,
quando a conheci. Devia ter sete anos, ou mesmo oito. O cabelo era escuro, com
um tom de um castanho intenso. A minha proximidade não afastou a sua ira. Eu
era uma estranha; como tal, ignorou-me, concentrando toda a sua atenção no
corredor aberto da enorme loja atrás de mim. Eu não era capaz de descortinar quem
a perturbava tanto. Tinham desaparecido no interior da loja, mas ela continuava
ali postada, com os punhos cerrados, os cabelos desgrenhados caídos para a
frente, emanando uma fúria desesperada e indefesa. Permaneci onde estava,
anónima e silenciosa, a cerca de dois metros de distância, fascinada pelo facto
de um encontro tão breve poder suprimir tantos anos decorridos entretanto e por
verificar que Sheila ainda deixava o meu coração a bater com força.
Eu
e Sheila, enquanto professora e aluna, só estivemos juntas durante cinco meses.
A nossa relação durante esse curto período provocou mudanças dramáticas no
comportamento de Sheila e alterou drasticamente o curso da sua vida. E, ainda
que de uma forma menos óbvia naquele tempo, a nossa relação também me
transformou dramaticamente e alterou drasticamente o curso da minha vida.
Aquela menina produziu um efeito profundo em mim. A coragem, a resistência e a
inadvertida capacidade daquela criança para exprimir essa enorme e premente
necessidade de ser amada, que todos sentimos (em suma, a sua natureza humana),
pôs-me em contacto com a minha própria identidade. Nessa época, eu dava aulas de
ensino especializado a uma turma de estudantes universitários, e é a uma dessas
estudantes que devo agradecer o facto de me ter oferecido um exemplar do livro
de Ron Jones, The Acorn People, e escrito a seguinte dedicatória: Para aTotey, na esperança de que um dia
escrevas acerca da Sheila e de todas as outras crianças.
O
artigo do jornal era muito pequeno, tendo em consideração o crime a que se
referia. Contava o episódio de uma menina com seis anos de idade, que atraíra
um menino que ainda mal andava para longe do pátio de recreio, levando-o para
um bosque nas imediações, atando-o a uma árvore e pegando-lhe fogo. O rapaz
estava no hospital com queimaduras graves. Tudo isso era relatado na página
seis, num espaço que não excedia a largura de uma tira de banda desenhada. Li a
notícia e, com repulsa, virei a página e prossegui a leitura. Seis semanas mais
tarde, Ed, o director do ensino especializado, telefonou-me. Era o dia de
regresso das férias de Natal, no início de Janeiro. Vai entrar outra criança
para a sua aula. Lembra-se daquela menina que pegou fogo a outro miúdo, em
Novembro?» In Torey Hayden, 1995, A Menina que Nunca Chorava, tradução de Fernando
Antunes, Editorial Presença, 2007, 2012, Lisboa, ISBN 978-972-233-804-2.
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