quinta-feira, 25 de junho de 2015

Escalas do Levante. Amin Maalouf. «… era o nome que se dava antigamente a esse rosário de cidades mercantis através das quais os viajantes da Europa chegavam ao Oriente. De Constantinopla a Alexandria, passando por Esmirna, Adana ou Beirute…»

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«Esta história não é minha, conta a vida de outro homem. Com as suas próprias palavras, que eu apenas compus quando me pareceu que careciam de clareza ou de coerência. Com as suas próprias verdades, que valem o que valem todas as verdades. Ter-me-á ele mentido por vezes? Não sei. Em todo o caso, não sobre ela, não sobre a mulher a quem amou, não sobre os encontros de ambos, os seus desvarios, as suas crenças, as suas desilusões; disso tenho a prova. Mas sobre as suas próprias motivações em cada etapa da sua vida, sobre a sua família tão pouco comum, sobre essa estranha maré da sua razão, quero dizer, esses fluxos e refluxos incessantes da loucura à sanidade, da sanidade à loucura, é, possível que ele não tenha dito tudo. No entanto, julgo-o de boa-fé. Inseguro sem dúvida tanto na memória como no juízo, quero admitir. Mas constantemente de boa-fé. Foi em Paris que me cruzei com ele, por acaso, numa carruagem do metro, em Junho de 1976. Lembro-me de ter murmurado: É ele! Bastaram-me apenas alguns segundos para o reconhecer. Nunca o encontrara até, então, nem ouvira o seu nome. Apenas tinha visto uma imagem dele num livro, anos antes. Não era um homem ilustre. Enfim, num certo sentido era-o, pois tinha a sua fotografia no meu manual de história. Mas não se tratava do retrato de uma grande personagem com o nome escrito por baixo. A fotografia mostrava uma multidão reunida num cais; em segundo plano, um navio que enchia o horizonte, com excepção de um quadrado de céu; a legenda dizia que durante a Segunda Guerra, alguns homens do Velho País tinham ido combater, na Europa, nas fileiras da Resistência, e que ao regressar haviam sido recebidos como heróis. Na verdade, no meio da multidão, no cais, havia um rosto de jovem deslumbrado. Os cabelos claros, os traços lisos, um pouco infantis, o pescoço esticado para o lado, como se acabasse de receber essa grinalda que o ornamentava.
As horas que eu tinha passado a contemplar essa imagem! Na escola, tivéramos o mesmo manual de história em quatro classes seguidas, devíamos estudar um período em cada ano: primeiro a Antiguidade gloriosa, das cidades fenícias às conquistas de Alexandre; depois os Romanos, os Bizantinos, os Árabes, os cruzados, os Mamelucos; em seguida os quatro séculos de dominação otomana; por fim as duas guerras mundiais, o mandato francês, a independência... Quanto a mim, era demasiado impaciente para esperar o desenrolar do programa. A história era a minha paixão. Logo nas primeiras semanas tinha percorrido todo o livro, não me cansava de ler e reler, o que deixara as páginas, uma após outra, dobradas, enrugadas, desbeiçadas, abundantemente sublinhadas, manchadas de garatujas, de notas, de interjeições a modo de comentários; no fim apenas restava da obra um lastimável novelo de folhas esfiapadas. Isto quer dizer que tive tempo bastante para escrutar aquela imagem, e reter cada pormenor dela. O que me fascinava nela? Havia sem dúvida nesse rectângulo preto e branco, não maior do que a palma da minha mão, tudo aquilo com que eu nessa idade sonhava: a viagem por mar, a aventura, a dedicação extrema, a glória, e talvez mais do que tudo aquelas jovens com o olhar virado para o deus vitorioso... Agora, o deus estava ali. A minha frente, em Paris, de pé no metropolitano, agarrado a uma barra metálica, desconhecido rodeado por uma multidão de desconhecidos. Mas sempre aquele olhar deslumbrado, aqueles traços lisos de criança velha, aquela cabeça de cabelos claros, hoje brancos, ontem talvez louros. E sempre aquele pescoço esticado para o lado, como não reconhecê-lo?
Quando desceu na estação Volontaires, segui-lhe os passos. Eu ia a um encontro, nesse dia, mas tinha feito a minha escolha: a pessoa com quem me devia encontrar poderia voltar a chamá-la ao fim da tarde, ou no dia seguinte; quanto a ele, estava convencido de que se lhe perdesse o rasto, não voltaria a vê-lo, nunca mais. No momento de sair para a rua, parou diante do mapa do bairro. Aproximou-se, até lhe encostar o nariz, depois recuou, procurando a distância apropriada. Os olhos traíam-no. Era a minha oportunidade, aproximei-me dele. Talvez eu possa ajudá-lo...» In Amin Maalouf, Escalas do Levante, Difel 82, Algés, 1997, ISBN 972-290-355-1.

Cortesia de Difel/JDACT