NOTA: De acordo com o original
«(…) Tive
pena sincera de ver o espectáculo d'aquella angustia. Fora em Portugal a mais
considerada, e mais respeitada artista, e custava-lhe a entrar para a multidão
depois de haver sido in illo tempore
o assombro d'ella. É comprehensivel esta magua; mais que comprehensivel,
respeitável: mas respeitável nem sempre quer dizer attendivel, e, apesar de
estarmos no paiz das reconsiderações, não intendeu nenhum commissario régio
reconsiderar sobre o caso, fundando-se em que também o tempo não queria
reconsiderar remoçando-a outra vez. O peor é que, apezar dos defeitos da sr.ª
Talassi, as actrizes que apparecem agora nem d'esses defeitos são capazes! Pelo
género, pelas predilecções, pelas qualidades, e até pelos deffeitos, foi a
actriz do seu tempo; foi-o também por outra circumstancia ainda, pela estatura.
Os artistas eram quasi todos grandes n’esse tempo. Theodorico velho. Theodorico
sobrinho, que é esse que ainda hoje ahi temos.
Ventura,
Victorino, Tasso, Vianna, Lisboa… Este ultimo era mais do que alto, era
gigante. Imaginem a sr.ª Tallassi, esbelta na scena, merecedora de um namorado
que arrancasse arvores e usasse, como Pichrocolo, de um homem em ar de bengala,
imaginem-a em scenas amorosas com um heroe miúdo, que em possança e dotes
phisicos lhe fosse notavelmente inferior! Já tenho ouvido contar aos que teem
experiência d'essas coisas por sua vida aventurosa e prendas bem fadadas, que
na vida real são os contrastes o maior encanto: adoram os velhos a juventude,
homem forte quer noiva franzininha, e as viragos
teem o mais doce fraco por homens delicados e airosos… Mas no theatro, não. No
theatro é tudo armado á óptica.
Imaginem-a
soberba e magnifica, ancha, espectaculosa, mulher de apparato e de enormes
feitos, ser raptada n'um incêndio e levada em braços por algum dos actores de
hoje, gente pequena, de maior fôlego que presença, por exemplo Santos que não é
o que se chama miudinho, que não se parece com o delicadinho d'Évora, mas que tem sem duvida maior cabelleira que
estatura. O que não quer dizer que não tenha maior chapéu ainda..., do que
cabelleira! Ah! Mas... Mas, se fallâmos em chapéu, também não posso parar aqui!
Seria injustiça. Quando o traje dos heroes é característico, adquire vulto como
o personagem. A niza de briche de Frederico da Prússia... A redingote grise de Napoleão... O chapéu
de Santos... Vamos á parte histórica. Venham factos: De uma occasião, ha poucos
mezes... Vi sobre o balcão da loja do Roxo, ao Rocio, um objecto de proporções
incalculáveis, tendo até certo ponto, ou, para que digamos melhor, tendo de
certo ponto... para diante, as formas de um chapéu.
Do mesmo modo que Paulo Plantier tem por cima das portas da
sua relojoaria um relógio enorme, em symbolo e distinctivo do estabelecimento, cuidei
também que fosse destinado a pôr-se á porta, na altura de um lampeão, como
annuncio da chapellaria, aquelle chapéu formidoloso. Ia a juntar-se gente,
parava sempre alli quem passava, e eu não pude resistir á tentação de entrar,
levando commigo para dentro da loja outro amigo—para vermos o chapéu juntos,
porque eu sósinho... não podia. Uma vez encostados nós dois, dando-nos mutuo
auxilio e incitando-nos reciprocamente a este commettimento de proporções de
chaldeu, exclamámos juntos, exactamente como as Marchisio exclamavam tudo, isto
é, em duetto, porque isolada a voz de qualquer d'ellas não tinha a força sufficiente
para as grandes phrases: Que chapéu!... O povo á porta exclamava também: Que
chapéu!... O chefe do movimento n'aquella chapelaria acreditada é um homem
loiro, fleugmatico. Olhava-nos sorrindo serenamente, e parecia disfructar in petto a surpresa e o pasmo da turba. Novamente
nós repetíamos: Que chapéu !! E a multídão, accrescentada a todo o instante por
novos transeuntes, repetia por sua vez: Que chapéu!!!» In Júlio
César Machado, Os Teatros de Lisboa, Ilustrações de Bordalo Pinheiro, Livraria
Editora Mattos Moreira, 1874, PN 2796 L5M25, Library Mar 1968, University of
Toronto.
Cortesia de LEMMoreira/1874/Bordalo Pinheiro/JDACT