terça-feira, 23 de junho de 2015

A Filha do Barão. Célia C. Loureiro. «Os olhos dóceis do barão João, escuros como os de Mariana, não viam mais nada desde que aquela menina nascera. A vaidade inicial de dona Sofia, por julgar que os três perfaziam um bonito retrato de família, desfez-se…»

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1805 - 1806
«(…) A rapariga viera sentar-se numa cama de folhas velhas de jornal, abrigada da frente ribeirinha numa daquelas ruelas interiores da cidade. A menina que geralmente se sentava ali a estender castanhas assadas sobre uma pequena fogueira improvisada começava por volta daquela hora e só regressava a casa quando escurecia. Durante todo o dia não comia mais do que três castanhas assadas, a fim de não prejudicar o negócio. A mãe assim a instruíra e ela obedecia, porque as irmãs, bem mais pequenas, comiam apenas um caldo aguado a meio do dia, e ela apiedava-se da sua fome. Teria dois ou três anos a menos que Mariana e um aspecto bem menos cuidado. Aquecia as mãos na chama antes de recolher as castanhas com gestos rápidos, e o cabelo apresentava-se gorduroso sob um xaile puído, enrolado em torno do pescoço e das costas. Tinha os pés envoltos em tiras de pano sujas e as unhas encardidas, as mesmas com que assou as castanhas que o barão João recebeu para entregar à filha, envoltas num pequeno pedaço de jornal. Fechou-lhe a mão em concha sobre três castanhas quentes, após estender uma pequena moeda à criança. Mariana arquejou ante o inesperado prazer que a sensação de algo quente na mão lhe causou naquela manhã de orvalho. O sorriu-lhe uma última vez, paternalmente: para vos manter aquecida durante a viagem.
Mariana arriscou um olhar à berlinda, apenas para descobrir que a voz da mãe guinchava contidamente ordens à criada para que posicionasse correctamente o tijolo quente, envolto em lã, sob os seus pés enregelados. Dona Sofia tinha ciúmes da relação afectuosa da filha com o pai. Tratando-se de uma mulher fria e de criação brusca, empurrada às pressas para um barão à época falido, antes passar fome ao lado de um barão do que refastelar-se em abundância com um ourives, não conhecera outro carinho que não o do casamento. E vira-se rapidamente preterida em favor da filha. Era por isso que dizia ter-se valido dos conhecimentos dos pretos libertos que povoavam os recantos mais obscuros da cidade para se precaver de uma nova gravidez. Uma filha fora mais do que suficiente para lhe roubar inevitavelmente o amor do marido, teria de ser tola para o afastar ainda mais.
Os olhos dóceis do barão João, escuros como os de Mariana, não viam mais nada desde que aquela menina nascera. A vaidade inicial de dona Sofia, por julgar que os três perfaziam um bonito retrato de família, desfez-se com prontidão. Era raro ver-se um homem tão apegado a uma criança, ainda para mais se a mesma era do sexo feminino. Acabou por achar a filha indigna de tantas atenções e aborrecia-se com os seus mimos e caprichos, que não passavam de um espelho dos seus. A comunicação recente de que seria obrigada a acompanhar Mariana ao Douro e a não regressar, porque o marido estava condenado a uma morte lenta, enchera-a de lágrimas difíceis de tragar. Mesmo nas suas últimas horas, o marido estava mais preocupado com o bem-estar daquela fedelha mimada do que consigo próprio. Tentara convencê-lo de que deveriam ficar e olhar pela sua saúde, prometera isso perante a Igreja, mas o barão metera-lhe uma carta por entre os dedos e reafirmara as suas intenções de que rumassem a Arraiais, entregassem a propriedade por casamento a um inglês qualquer que pretendia tirar proveito da região vinícola do Douro e não voltassem ao sul a não ser que ele lhes desse ordens nesse sentido». In Célia Correia Loureiro, A Filha do Barão, 1809, Marcador Editora, 2013/2014, ISBN 978-989-754-039-4.

Cortesia de Marcador/JDACT