O
Pato Bravo, os Peixinhos e os Lobos com pele de Cordeiro
«São vagabundos seres despojados de bens
materiais e voltados para o lado espiritual da existência humana; seres que,
graças à distância que (voluntária ou involuntariamente) os separa do resto dos
homens, conseguem detectar-lhes os defeitos e pôr o dedo nas feridas da
Humanidade. E é precisamente com dois desses vagabundos que se inicia Peixinho
Grelhado. Frente a uma fogueira, preparam um peixe para comer, munidos do
respectivo manual: um livro especializado que caracteriza cientificamente as
várias qualidades existentes de peixe e a forma mais adequada de os fritar,
grelhar, assar ou cozer. Seguimos atrás deles. E é aqui que o autor nos apanha
na ratoeira. Afinal, o peixinho somos nós: os pequenos deste mundo que
os grandes se entretêm a grelhar. Ou a fritar, ou a assar, ou a cozer. E os
vagabundos, para usar a língua do autor, que neste texto associa
recorrentemente pessoas e animais, revelam-se autênticos lobos em pele de
cordeiro. Para além do profundíssimo desencanto contido nesta peça, parece-me
que o mais interessante de Peixinho Grelhado, é que o alvo da ironia não
seja aqui apenas o mundo que o rodeia mas a sua própria obra e as convenções
que criou ao longo de décadas de escrita para o palco. Convenções com que agora
decidiu, também ele, brincar, para nos confundir» In Ana
Maria Ribeiro, Lisboa, 2001.
Peixinho
grelhado
«Estamos
em pleno campo, onde podem ser vistas algumas flores, sobretudo malmequeres.
Aqui e além, espalhados pelo chão, há restos de árvores abatidas. Ao fundo, corre
um riacho que o público não vê, embora possa ouvir o ruído da água, normalmente
suave. Em cena, dois homens, Joe e Mac, casa dos quarenta. Com naturalidade e
algum desmazelo, vestem calças remendadas e, por cima de camisas de mangas
arregaçadas, envergam coletes, de uma cor incerta, comida pelo tempo. Quando a
acção começa, o riacho quase não se ouve. Joe e Mac, sentados em toros de
grandes dimensões, olham em silêncio para uma fogueira improvisada, onde estão
a grelhar peixe. Um tempo.
Joe (num grito,
olhando pela primeira vez o companheiro), Mac!
(Mac
não reage, continuando a olhar a fogueira. Um tempo)
Joe (procurando
suavizar a voz) E se fosses buscar um braçado de lenha?
(Mac
continua sem reagir.)
Joe (começando a
impacientar-se) É uma coisa que não falta por estas paragens! (Pausa) Desde que
eles começaram... (Hesita na palavra)..., as escavações..., há árvores mortas
por toda a parte! (Longa pausa. Recuperando, aparentemente, a calma) Ao menos,
que diabo, podias arranjar meia dúzia de gravetos. (Pausa. Insinuante) Sempre
ajudava a avivar o lume... E o nosso peixinho grelhava... (Com exagerado entusiasmo)...,
muito mais depressa...
Mac (continuando s
olhar a fogueira; a meia voz) Hum…
Joe (insistindo,
sorridente) Nem tinhas de ir longe... Davas meia dúzia de passos e...
Mac (sem mudar de
atitude) - Hum...
Joe (com um largo
sorriso) Então já vês! (Pausa. De nono impaciente, notando que Mac continua
apático) Por que é que não vais? (Levanta-se, indicando a Mac, com severidade,
o caminho que ele deve seguir, para encontrar a lenha ou os gravetos)
Mac (leantando-se
também e encarando Joe, pela primeira vez; calmo mas categórico) Por duas
razões, Joe. (longa pausa.) Bom senso... E um saudável sentido das responsabilidades.
(Pausa. Em tom amigável) Pois então tu querias que o nosso peixinho ficasse
estorricado? (Trepa para o toro onde já estivera sentado, impondo silêncio a Joe;
em tom doutoral) O achigã, Joe, deve ser grelhado em lume brando. (Pausa.
Apontando para o peixe que está ao lume) Tempo mínimo, para um exemplar daquela
corpulência: vinte minutos.
Joe (desconfiado) Achigã?...
(Apontando para a fogueira) Como é que tu sabes? (Pausa) Quem é que te disse o
nome..., do nosso peixinho?
Mac (com
naturalidade, tirando um livrinho do bolso e abrindo-o em determinada página) Basta
olhar a gravura da página vinte e três... (Descendo do toro onde tem estado
empoleirado, entrega o livro a Joe.) Achigã... Micropterus salmoides.
Joe (sarcástico,
quase sem olhar a gravura) Tá bem, pronto... (Fecha o livrinho com toda a
força)... Chamemos-lhe assim... (Atira o livrinho para longe.)
Mac (formalizado) Mas
o que é que tu julgas?!... É uma obra séria, Joe!... Universitária! (Começa à
procura do livrinho pelo chão) O Autor até fez um..., um doutoramento sobre a
matéria... (Continuando à procura do livrinho.) Pisci... (Encontra finalmente o
livro e exibe-o, triunfante.) Piscicultura... É esse o termo!...Vem na
contracapa... (Lendo) Doutoramento em mil novecentos e setenta e...
Joe
(interrompendo-o; preocupado) Pois sim, mas com este lume...
(Mac,
durante esta fala de Joe, limpa o livrinho da poeira e guarda-o no bolso, com
ar superior)» In Jaime S. Sampaio, Teatro Completo, III, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, Biblioteca de Autores Portugueses, Lisboa, 2002, ISBN 972-271-127-X.
Cortesia
de INCM/JDACT