Um
Noir Baiano
«(…) O vozerio foi aos poucos abafando-se,
e se ouviam, cada vez mais altos, gritos, choros, rezas, muitas rezas, em
várias fés. A polícia cercou o trio. O mar de gente abriu-se como o Mar
Vermelho a Moisés para que passassem duas ambulâncias e vários carros de
polícia com as luzes piscando e sirenes ligadas. Sereia chegou morta ao
hospital. E o impossível aconteceu: o carnaval da Bahia parou. Os tambores, as
guitarras e as vozes silenciaram nos trios e nas ruas. Ninguém sabia o que
fazer nem para onde ir. A televisão transmitia ao vivo do Campo Grande e do
Hospital Central, personalidades davam entrevistas chorando, artistas,
políticos, desportistas, gente do povo, todos se sentiam atingidos, a alegria
baiana sofria um rude golpe, no seu momento de maior brilho colectivo. O
secretário de Segurança garantia que todas as saídas da cidade foram bloqueadas,
que toda a área em volta do Campo Grande fora isolada, que os apartamentos
próximos ao local do crime estavam sendo revistados e que todo o efectivo
policial seria mobilizado na caça ao assassino, enquanto a cena fatal era
apresentada na TV a cada minuto, em slow
motion. Vista de helicóptero, a avenida Oceânica parecia um rio de gente, e
os trios parados e silenciosos, ilhas de luz. Ao longo de quatro quilómetros,
da Barra a Ondina, estacionados em intervalos de trezentos metros, os trios do
Asa de Águia, da Timbalada de Carlinhos Brown, de Daniela Mercury, Margareth Menezes,
Ivete Sangalo, Jammil e Uma Noites, Armandinho, Harmonia do Samba, de Gilberto
Gil, com Caetano Veloso como convidado, e vários outros, imóveis e chocados,
como todo mundo, esperavam. Nas ruas e nas calçadas, nos camarotes e na praia,
lado a lado estranhos se davam as mãos, choravam, rezavam, se abraçavam,
esperavam. Diante do imenso telão no Farol da Barra a multidão assistia à
transmissão ao vivo na TV, com depoimentos de celebridades e autoridades, a
cena fatal mais uma vez repetida. Muitos choravam, outros cobriam os olhos com
as mãos, todos esperavam na cidade paralisada.
Terça-feira de carnaval, nove e
meia da noite. Na unidade móvel da TV estacionada no Campo Grande, de onde
estão sendo geradas as imagens da cobertura, eu via e revia a cena diversas
vezes, em diversos ângulos, em slow motion,
por gentileza do colega Jaime Nogueira, que foi meu editor no Diário e chefiava
a reportagem da emissora. Em um dos monitores que mostravam diversos pontos da
cidade entraram imagens geradas do Hospital Central. Seguranças abriram espaço
para o presidente da câmara, o repórter da TV aproximou-se com o microfone,
espremido por um batalhão de colegas e curiosos. O director da cobertura
apertou um botão e as imagens do Hospital Central entraram ao ar em rede
nacional. Ao mesmo tempo, apressados e nervosos, invadiram a unidade móvel o
dono da emissora, Roberto Farah, e Tuta Tavares, com uma fita de vídeo na mão.
Farah ordenou ao director que a colocasse no ar imediatamente depois da fala do
presidente, Tuta daria o sinal.
No telão do Farol da Barra,
diante de uma muralha de câmaras e gravadores, ao lado do presidente, com a voz
embargada, o velho cacique falou: diante
do impacto, da magnitude e da violência dessa tragédia, solidarizo-me com todos
os brasileiros na dor por esta perda colossal que deixou a todos nós sem voz e
sem acção. Como poucas pessoas no Brasil, essa jovem filha da Bahia soube dar
alegria aos que choram e esperança aos que sofrem. A brutalidade da sua perda,
que entristece e comove todo o país, atinge-me também pessoalmente, como um
amigo que teve o privilégio de conviver com uma artista tão talentosa e uma
personalidade tão original e exuberante ao longo de sua breve e luminosa
carreira. Como um cometa de luz e de alegria ela passou pela Bahia, pelo Brasil
e por nossas vidas e estará sempre presente em nossa memória e em nossos
corações. E agora dirijo-me especialmente ao povo da Bahia e aos turistas que
nos visitam, a todos que estão em nossas ruas, festejando pacificamente e agora
sob o impacto desta emoção.
A imagem de helicóptero mostrava
o rio de pessoa nas redondezas. Não cabe ao governo do Estado nem à Autarquia
decidir o que cada um pode ou deve fazer neste momento de dor dentro desta
festa de alegria e liberdade. A nós cabe garantir a paz, a segurança e a
liberdade de todos, fazer respeitar a lei e a vontade popular. Com a luz da sua
presença e a magia da sua voz, ninguém contribuiu mais para o brilho e o
sucesso da nossa maior festa do que essa jovem artista que nos deixou. Ninguém
melhor do que ela representa o povo que deu corpo e alma a essa manifestação
máxima de nossa cultura e nossas tradições. A um sinal de Tuta o director
apertou um botão e o rosto de Sereia, luminoso e sorridente, encheu o ecran, a multidão suspirou. E aplaudiu. Molhada
de suor e eufórica depois da sua apresentação triunfal, Sereia dá uma risada
melodiosa e responde a uma repórter, gritando no meio de aplausos ensurdecedores,
ao sair ovacionada do palco do Festival de Verão do ano anterior. Para mim,
cada dia é um milagre..., eu vivo intensamente cada minuto..., se eu pudesse
escolher, gostaria de morrer cantando, no carnaval, no meio do povo..., faz uma
pequena pausa, claro que não nos próximos noventa anos! E dá uma
gargalhada. E não ia querer ver ninguém chorando, ia querer que todas as
pessoas soubessem que fui muito feliz e que todos me amaram cantassem as minhas
músicas, ia ser como se eu continuasse viva..., para sempre. A multidão
emudeceu». In Nelson Motta, O Canto da Sereia, Um Noir Baiano, Editora Objectiva,
2002, ISBN 857-302-482-8.
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