«A coragem que vence o medo
tem mais elementos de grandeza que aquela que o não tem. Uma começa
interiormente; outra é puramente exterior. A última faz frente ao perigo; a primeira
faz frente, antes de tudo, ao próprio temor dentro da sua alma». In Fernando Pessoa
«(…) Por
estes mesmos dias, talvez antes, talvez depois de ter Joana Carda riscado o
chão com a vara de negrilho, andava um homem a passear na praia, era isto ao entardecer,
quando o rumor das ondas mal se ouve, breve e contido como um suspiro sem
causa, e esse homem, que mais tarde dirá chamar-se Joaquim Sassa, ia caminhando
acima da linha da maré que distingue as areias secas da areia molhada, e de vez
em quando baixava-se para apanhar uma concha, uma pinça de caranguejo, um fio
de alga verde, não é raro gastar-nos assim o tempo, este passeante solitário se
estava gastando assim. Como não levava bolsos nem saca para guardar os achados,
devolvia à água os restos mortos quando tinha as mãos cheias deles, ao mar o
que ao mar pertence, a terra que fique com a terra. Mas toda a regra leva as
suas excepções, e uma pedra que adiante se via, fora do alcance das marés,
levantou-a Joaquim Sassa, e era pesada, larga como um disco, irregular, fosse
ela das outras, maneirinhas, de contorno liso, daquelas que cabem folgadas entre
o polegar e o indicador, e Joaquim Sassa tê-la-ia atirado a rasar a água plana,
para a ver saltar, puerilmente feliz com a própria destreza, e enfim mergulhar,
já perdido o impulso, pedra que parecera ter o destino traçado, ressequida de
sol, molhada só da chuva, e afinal mergulhando na escura profundidade para
esperar um milhão de anos, até que este mar se evapore, ou recuando a faça
regressar à terra por outro milhão de anos, dando ao tempo tempo de descer à praia
outro Joaquim Sassa, que sem saber repetirá o gesto e o movimento, nenhum homem
diga, Não farei, segura e firme não está nenhuma pedra.
Nos areais do sul, a
esta hora tépida, há quem tome o último banho, nadar, brincar com uma bola,
mergulhar sob as ondas, ou repouse vogando sobre um colchão de ar, ou, sentindo
na pele a primeira aragem do entardecer, acomode o corpo para receber o afago
derradeiro do sol que vai pousar-se no mar por um segundo, de todos o mais
longo, porque o olhamos e ele se deixa olhar. Mas aqui, nesta praia do norte
onde Joaquim Sassa segura uma pedra, tão pesada que já as mãos lhe cansam, o
vento sopra frio e o sol mergulhou metade, nem gaivotas voam sobre as águas. Joaquim
Sassa atirou a pedra, contava que ela caísse distante poucos passos, pouco mais
que a seus pés, cada um de nós tem obrigação de conhecer as próprias forças,
nem havia ali testemunhas que se rissem do frustrado discóbolo, ele é que estava
preparado para rir-se de si mesmo, mas não veio a ser como cuidava, escura e
pesada a pedra subiu ao ar, desceu e bateu na água de chapa, com o choque tomou
a subir, em grande voo ou salto, e outra vez baixou, e subiu, enfim afundou-se
ao largo, se a brancura que acabámos de ver, distante, não é só a franja de
espuma de ter-se quebrado a vaga. Como foi isto, pensou perplexo Joaquim Sassa,
como foi que eu, de tão poucas forças naturais, lancei tão longe pedra tão
pesada, ao mar que já escurece, e não está aqui ninguém para dizer-me, Muito
bem, Joaquim Sassa, sou tua testemunha para o livro Guiness dos recordes, um
tal feito não pode ficar ignorado, pouca sorte, se eu for contar o que aconteceu
chamam-me mentiroso. Uma onda muito alta veio do largo, espumejando e
rebentando, afinal a pedra sempre caiu ao mar, este é o efeito conhecido desde
os rios da infância de quem na infância teve rios, a ondulação concêntrica que
as pedras atiradas causam.
Joaquim Sassa correu
praia acima, e a onda desfez-se na areia arrastando conchas, pinças de
caranguejos, algas verdes, mas também as outras, as bodelhas, as sanguíneas, as
laminárias. E uma pedra pequena, maneirinha, dessas que cabem entre o polegar e
o indicador, há quantos anos não veria ela a luz do sol. Dificílimo acto é o de
escrever, responsabilidade das maiores, basta pensar no extenuante trabalho que
será dispor
por ordem temporal os
acontecimentos, primeiro este, depois aquele, ou, se tal mais convém às necessidades
do efeito, o sucesso de hoje posto antes do episódio de ontem, e outras não
menos arriscadas acrobacias, o passado como se tivesse sido agora, o presente
como um contínuo sem princípio nem fim, mas, por muito que se esforcem os autores,
uma habilidade não podem cometer, pôr por escrito, no mesmo tempo, dois casos
no mesmo tempo acontecidos. Há quem julgue que a dificuldade fica resolvida
dividindo a página em duas colunas, lado a lado, mas o ardil é ingénuo, porque
primeiro se escreveu uma e só depois a outra, sem esquecer que o leitor terá de
ler primeiro esta e depois aquela, ou vice-versa, quem está bem são os cantores
de ópera, cada um com a sua parte nos concertantes, três quatro cinco seis
entre tenores baixos sopranos e barítonos, todos a cantar palavras diferentes,
por exemplo, o cínico escarnecendo, a ingénua suplicando, o galã tardo em
acudir, ao espectador o que lhe interessa é a música, já o leitor não é assim,
quer tudo explicado, sílaba por sílaba uma após outra, como aqui se mostram.
Por isto é que, tendo-se falado primeiro de Joaquim Sassa, só agora se irá falar
de Pedro Orce, quando lançar Joaquim uma pedra ao mar e levantar-se Pedro da
cadeira foi tudo obra de um instante único, ainda que pelos relógios houvesse
uma hora de diferença, é o resultado de estar este em Espanha e aquele em
Portugal.
Sabido é que todo o efeito tem sua causa, e esta é
uma universal verdade, porém, não é possível evitar alguns erros de juízo, ou
de simples identificação, pois acontece considerarmos que este efeito provém
daquela causa, quando afinal ela foi outra, muito fora do alcance do
entendimento que temos e da ciência que julgávamos ter. Por exemplo, pareceu ficar
demonstrado que se os cães de Cerbère ladraram foi porque Joana Carda riscou o
chão com uma vara de negrilho, e contudo só uma criança muito crédula, se
alguma sobrou dos dourados tempos da credulidade, ou inocente, se o santo nome
de inocência assim pode ser jurado em vão, uma criança capaz de acreditar que,
fechando a mão, guardou a luz do sol dentro dela, só essa criança acreditaria
que fossem capazes de ladrar cães que antes nunca ladraram por razões que tanto
são de ordem histórica como fisiológica». In José Saramago, A Jangada de Pedra, Editorial Caminho, 1986, 16ª Edição,
Reunidos, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-21-0289-6.
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