terça-feira, 9 de junho de 2015

Diálogo com a Morte. Marie Hennezel. «A sociedade ocidental precisa de rever as suas atitudes perante a morte, abandonando o medo e aceitando-a como uma fase do processo da vida»

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«Escondemos a morte como se ela fosse vergonhosa e suja. Vemos nela apenas horror, absurdo, sofrimento inútil e penoso, escândalo insuportável, conquanto ela seja o momento culminante da nossa vida, o seu coroamento, o que lhe confere sentido e valor. Não deixa, por isso, de continuar a ser um imenso mistério, um grande ponto de interrogação que transportamos no mais íntimo de nós. Sei que um dia vou morrer, embora não saiba como, nem quando. Num certo lugar, bem no fundo de mim, sei disso. Sei que um dia terei de deixar os que me são queridos, a não ser que sejam eles a deixar-me antes. É esse saber mais profundo, mais íntimo, o que tenho em comum com todos os outros humanos. Por isso é que a morte de outrem me toca. Ela permite-me penetrar no âmago da única verdadeira questão: que sentido tem, então, a minha vida?
Quem tem o privilégio de acompanhar alguém nos seus últimos instantes de vida sabe que estes entram num espaço de tempo muito íntimo. A pessoa, antes de morrer, tentará transmitir aos que a acompanham o essencial de si própria. Através de um gesto, de uma palavra, às vezes somente de um olhar, tenta dizer o que verdadeiramente conta, e que ela nem sempre pôde ou soube dizer. A morte, essa que todos havemos de viver um dia, a que fere os nossos próximos ou os nossos amigos, talvez seja o que nos leva a não nos contentarmos em viver à superfície das coisas e dos seres, o que nos move a penetrar na sua intimidade e na sua profundeza. Após anos e anos de assistência a pessoas que vivem os seus últimos momentos, não sei muito mais sobre a morte em si mesma, mas a minha confiança na vida não tem senão aumentado. Vivo, sem dúvida, mais intensamente, com uma consciência mais aguda, aquilo que me é dado viver, alegrias e tristezas, mas também todas essas pequenas coisas quotidianas, que são óbvias, tal como o simples facto de respirar ou de andar.
Talvez me tenha tornado mais atenta aos que me rodeiam, consciente de que os não terei para sempre a meu lado, desejosa de os descobrir e de contribuir, tanto quanto puder, para que eles venham a ser aquilo para que são chamados. Por isso, tendo passado anos junto daqueles a que chamam moribundos, mas que estão bem vivos até ao fim, sinto-me mais viva do que nunca. Devo isso àqueles que julgo ter acompanhado, mas que, na humildade em que o sofrimento os afundou, se revelaram uns mestres. Procuramos todos ver através da morte. Há algo para além dela? Para onde vão os que nos deixam? Questão para muitos dolorosa, cravada como um espinho no coração da nossa humanidade. Sem este problema teríamos nós desenvolvido tantas filosofias, tantas respostas metafísicas, tantos mitos? A psicanálise, por seu lado, concluiu de uma vez por todas a irrepresentabilidade da morte. Afastou-se desta questão, que deixa de bom grado como pasto para os filósofos, para se interessar apenas pela morte em vida, isto é, pelo luto.
Se a morte nos angustia tanto, não será por nos remeter às verdadeiras questões, aquelas que frequentemente abafamos, com a ideia de as considerar mais tarde, quando formos mais velhos, mais sabedores, quando dispusermos de tempo para nos interrogarmos sobre os problemas essenciais? Aqueles que se abeiram da morte descobrem por vezes que a experiência do além lhes é apresentada na própria experiência da vida, aqui e agora. A vida não nos faz viajar de um além para outro, para além de nós próprios, para além das nossas certezas, dos nossos juízos, dos nossos egoísmos, para além das aparências? Não nos convida a constantes avanços e reflexões, a constantes ultrapassagens? Quando a morte está tão perto, quando a tristeza e o sofrimento dominam, pode haver ainda vida, alegria, sobressaltos de alma de uma profundidade e intensidade por vezes nunca antes experimentadas». In Marie Hennezel, Diálogo com a Morte, Editorial Notícias, colecção Ciência Aberta, Lisboa, 1997/2002, ISBN 972-460-793-3.

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