A
Promessa
«Cozinha em casa
de Salvador. Lareira grande, baixa, praticável. Ambiente que resuma os usos e
os credos dos pescadores portugueses: não apenas os duma certa região (Nazaré ou
Póvoa de Varzim, por exemplo), mas os da costa em geral. É madrugada. Ouve-se, lá
fora, um mar bravíssimo e o vento rijo. Ao subir o pano, Salvador, só em cena,
acocorado em cima da lareira, ateia o fogo com uma nova, acha, soprando.
Semiobscuridade no resto do compartimento.
Maria
do Mar
(entra, vindo do quarto onde dorme com José: ainda desgrenhada, o cabelo comprido
caído pelas costas, traz uma das mãos uma candeia acesa, erguida ao nível do
rosto. Descalça, saia negra muito rodada, blusa vermelha): Bom dia, pai!
Salvador (enchendo o
cachimbo; veste camisola de grossa lã preta): Bom dia, rapariga!
Maria
do Mar
(que vai pendurar a candeia num prego, para tal existente na coluna da
lareira): Maldito tempo!... (Agressiva.) Vossemecê dormiu aí?!
Salvador: Levantei-me
ainda não eram quatro horas: não podia com o frio…
Maria
do Mar
(alisando os cabelos com um pente): O pior é a lenha... Muito friorento
vossemecê me saiu, pai! Até na cama tem frio...
Salvador (que fixa o
fogo): Estou velho, rapariga...
Maria
do Mar
(troça crispada): Não é da idade, pai: isso..., é do sangue!
Salvador: Estou velho...
e só.
Maria do Mar
(pára, de súbito, atirando com o pente para cima duma mesa): Mais vale só,
que-mal acompanhado!
Salvador (silêncio; fixando
Maria do Mar): Explica-te, Maria do Mar!...
Maria
do Mar
(brusca, atando a saia na cinta): Ora!... Que tempo mais malvado!...
Salvador: Queres tu
dizer com isso, que a minha Rosária, Deus a tenha em descanso!, não era boa
companheira?...
Maria
do Mar
(cantarolando): Ai, la-ri-ló-lé... Vossemocê não está bom, meu pai? Põe mau sentido
em tudo quanto eu digo!...
Salvador: Como tu estás
mudada, Maria do Mar! (Silêncio) E como tu me tratas!... Tens tazão: eu, agora,
não passo dum peso morto...
Maria
do Mar
(que prepara o café): Vossemecê está em sua casa, meu pai… (num rompante) em
sua casa, com o seu filho José e o seu filho Jesus! Aqui, a estrangeira sou eu...
(a bater no peito com ambas as mãos) eu, eu é que sou a estranha! Não tenha
medo, meu pai: está em sua casa, com a sua gente... Não, não pesa a ninguém!
Salvador: Mas o pão que
eu como é teu! Eu já não tenho braços..., nem pernas... (Mostra um par de muletas)
Ai, Maria do Mar, isto é muito triste!...
Maria
do Mar
(sempre a trabalhar): O pão que vossemecê come é do seu filho José: ele é quem
o ganha...
Salvador: Dele ou teu,
não é o mesmo? Ele não é o teu homem?!
Maria
do Mar
(a bater com a, cafeteira, nervosa): Meu homem?! (Riso frenético) Deixem-me
rir! (A cantar) Ai, la-ri-ló-lé... O meu homem!
Salvador (com estranheza):
Estás doida rapariga? Que diabo tens tu?!
Maria
do Mar
(angustiada, quase a chorar): Maldito tempo! (Vai abrir a janela: claridade do
exterior, mar e vento mais audíveis) Ah, mar! Ah, filho dum cão! Que o demónio
te beba, malvado! (Fecha violentamente a janela) E há cinco dias que isto
dura!... (num ímpeto, girando em redor de si mesma) Estou farta do mar, entende?
Farta, até aqui! (Indica os cabelos) Mar, mar, mar... O mundo não é só o mar,
meu pai!
Salvador: Para a gente
é, Maria do Mar: se tu, rapariga, até no nome lhe pertences!
In
Bernardo Santareno, Obras Completas, A Promessa, Editorial Caminho, Lisboa,
1984, Depósito legal nº 6563.
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