segunda-feira, 15 de junho de 2015

Teorema. Pier Paolo Pasolini. «A conversa entre Odetta e o seu galanteador imberbe relaciona-se com um álbum de fotografias, que Odetta aperta ciosamente, junto aos livros da escola. Um álbum com a capa de veludo…»

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Dados
«(…) Tocam os sinos do meio-dia. Também Odetta, a irmã mais nova de Pietro, regressa a casa da escola (o Instituto das Marcelinas). É dulcíssima e inquietante a pobre Odetta; tem uma testa que parece uma caixinha cheia de inteligência angustiada, aliás, quase de sabedoria. Como os filhos dos pobres, que rapidamente são adultos e já sabem tudo da vida, por vezes, também os filhos dos ricos são precoces, envelhecidos pela velhice da sua classe: vivem, portanto, como uma espécie de doença, mas com ironia, análoga à doce alegria das crianças pobres, uma espécie de código não escrito mas conhecido instintivamente de cor. Odetta parece ocupada principalmente a esconder tudo isto: esforço que todavia não é coroado de sucesso, porque é este mesmo esforço visível o espião da sua verdadeira alma. Se o seu rosto é oval e bonito (com algumas sardas que a tornam de certo modo convencionalmente poética), os olhos grandes, de pestanas compridas e o nariz curto e preciso, a boca é, pelo contrário, uma revelação quase embaraçosa daquilo que Odetta é realmente: não que seja feia esta boca, aliás, é extremamente graciosa: no entanto, um pouco monstruosa, pronto: é tão pronunciada e particular que nem por um instante passa despercebida, com aquele lábio inferior reentrante, como as bocas dos coelhinhos ou dos ratos: trata-se, enfim, da prega divertida do humorismo, ou seja, da consciência amargurada e disfarçada do próprio nada, sem cujo cariz cómico Odetta não poderia viver.
Assim, agora pela estrada, regressando ao mesmo tempo que o irmão Pietro, Odetta tem todos os sinais exteriores e comuns de uma rapariguinha muito rica, a quem é consentido pela família (por um certo snobismo) vestir-se e comportar-se de forma, digamos, moderna (apesar das Marcelinas). Odetta também tem um namorado que a corteja: um amável e alto ídolo da sua classe social e da sua raça. À volta deles está igualmente o grupo dos companheiros e companheiras, adolescentes apenas que já se comportam de modo totalmente natural à maneira de, sem dúvida, reproduções perfeitas dos seus pais. A conversa entre Odetta e o seu galanteador imberbe relaciona-se com um álbum de fotografias, que Odetta aperta ciosamente, junto aos livros da escola. Um álbum com a capa de veludo, repleto de gatafunhos art nouveau cor-de-rosa e vermelhos. Este álbum está completamente vazio, ainda: como é evidente, foi acabado de comprar numa papelaria. Só a primeira página está inaugurada, por uma grande fotografia: a fotografia do pai.
O galanteador brinca um pouco acerca deste álbum, como se soubesse bem que se trata de uma velha mania da rapariga; quando, porém, se torna apenas um pouco mais audaz, um só gesto, uma só palavra, junto de uma fonte de pedra escura, sob filas de pequenas árvores que parecem de metal, Odetta afasta-se, fugindo. A sua fuga é elegante e caprichosa, perfeitamente sem significado, mas na realidade escondendo um terror verdadeiro. E também a sua frase, dita entre os amiguinhos e as amiguinhas ao galanteador, inflamado, que a persegue, não gosto de homens, é dita com insolência e humor refinado: contudo, é claro que, de alguma forma, esconde uma verdade». In Pier Paolo Pasolini, Teorema, 1968, 1991, 1994, Quasi Edições, tradução de Ana Tanque, biblioteca Metamorfose, 2005, ISBN 989-552-105-7.

Cortesia de QuasiEdições/JDACT