O
arco e a flecha. Antemanhã, Dezembro de 1080
«A
mulher estava de cócoras, à cabeceira do leito, segurando com tenacidade o
lençol que havia sido atado aos dois postes da cama. Tratava-se de uma enxerga
simples, pouco mais do que um estrado, cuja única vantagem residia precisamente
na cabeceira encimada pelos dois grossos pilares, aos quais estavam atadas as
extremidades do pano. Este amparo tinha duas funções: ajudá-la a segurar-se e a
fazer força. Por baixo de si, havia um ninho de lençóis, preparados para
acolherem sem dano a pequena cabecinha do recém-nascido quando este irrompesse
no mundo, depois de transpor a barreira dolorosamente dilatada da vulva da
progenitora. A auxiliar a jovem parturiente encontrava-se Cesaltina, a parteira.
Tinha pelo menos o dobro da idade da mulher mais jovem e já tinha assistido a
metade dos nascimentos ocorridos por toda aquela região nos últimos 20 anos. Atenta
às contracções, ia instruindo a jovem, dizendo-lhe quando devia fazer força e
quando devia poupar as energias. O parto estava iminente.
Vá,
filha, em breve poderás descansar. A mulher anuiu. O seu rosto estava rubro, as
suas veias, tão dilatadas que pareciam prestes a explodir. Cesaltina limpou o
suor que lhe cobria as faces, descendo pelo peito desnudo, com um pano húmido,
esboçando um sorriso de encorajamento. O casebre escuro cheirava a fumo e a
mofo e era um lugar triste, desprovido de qualquer beleza ou encanto. Apesar de
não divergir da maioria, não deixava de acentuar o desânimo e a tensão. Por
isso a parteira insistiu, desta feita num tom, tanto quanto possível, mais
meigo: Agora, filha, é até a criança nascer... Toda a força. À sua frente, a
visada correspondeu, esboçando um sorriso de alento, por entre o esgar
condoído. Em poucos minutos, o nascimento consumou-se. A parteira, segurando
delicada mas firmemente a criança, cortou por fim o cordão umbilical e,
assentando-lhe de seguida a palmada que o marcaria para vida, proferiu: Deus te
abençoe e proteja. Que a vida que agora começa te seja branda, como um caminho
plano e desprovido de escolhos..., um longo caminho que te conduza ao Céu...
O
pequeno desatou num berreiro. Era um rapaz e parecia saudável, pelo menos tendo
em conta a força com que berrava. Cesaltina não evitou o comentário: Ah, és um
palmo de carne valente. Vens ao mundo determinado a vencer! A mãe,
momentaneamente alquebrada, abriu os olhos e sorriu. Tens um homem, e é
perfeito, ouviu a parteira, dirigindo-se-lhe. A mulher sorriu uma vez mais,
pensando para consigo. É pena que não
lhe possa dizer quem é o pai. Foi quando o limpava a uma toalha lavada
que a parteira vislumbrou o sinal, em forma de borboleta, que lhe marcava a nádega
esquerda. Onde é que ela já vira um sinal semelhante?, questionou-se,
disfarçando a inesperada pontada que a assaltou.
Depois
de a parteira ter saído, com a promessa de regressar mais tarde, Ermelinda pôde
enfim chorar. Chorava de alegria, mágoa e apreensão, tudo junto. Alegria pelo
filho escorreito que acabara de ter, mágoa e receio pelas circunstâncias em que
havia sido concebido. A violação tinha ocorrido nove meses antes, e o mais
certo era o seu autor nem suspeitar das consequências do seu acto. Não fazia
parte do pensamento de muitos homens preocuparem-se com o resultado das suas acções,
e muito menos um fidalgo que praticamente não tinha contas a prestar a ninguém,
senão ao seu rei. E o rei estava demasiado longe para ouvir os lamentos dos
seus mais pequenos súbditos. Na verdade, imaginar o rei era quase o mesmo que
imaginar a Deus, sentado no seu trono, no alto dos céus. Claro que Deus ainda
era conhecido pelo seu poder de tudo ver e a tudo acudir, se bem que, tal como
a maioria, também a ela fosse difícil perceber como uma única entidade
conseguia acudir a tanta gente ao mesmo tempo. Talvez por isso houvesse tantos
pedidos à espera de resposta. Também ela pedira para que aquela criança não
viesse a ser gerada, mas logo que começou a senti-la, apaixonou-se por ela e,
então, temerosa que Deus tivesse escutado o seu pedido anterior, receou pela
sua vida. Neste caso, Deus parecia tê-la ouvido, ou então talvez o seu pedido
inicial continuasse à espera. O seu bebé era perfeito e apresentava um ar sadio
que a emocionou. Não fosse aquele misterioso sinal, implantado na nádega, e
talvez fosse capaz de superar todas as demais amarguras.
Ela
sabia como sinais daqueles eram às vezes interpretados como marcas do Demo e,
em locais onde a supersticção estava mais enraizada, não era raro que o povo
atemorizado, movido por um qualquer capricho, resolvesse atentar contra a
integridade dos infelizes nascidos com eles. Enquanto amamentava, não conseguiu
deixar de lembrar-se das circunstâncias em que o pequeno rebento havia sido
concebido. O fidalgo regressava de uma festa com os amigos, ao cair da noite,
quando a avistou no pátio do castelo. Tinha vindo despejar os restos da refeição
da noite nas escudelas do cão e aprestava-se a entrat. Um instante mais e teria
passado despercebida, pensou com mágoa, mas não valia a pena entregar-se agora
a lamentações. Uma mulher é a criatura mais desamparada que há sobre a Terra, e
ela ainda mais, por não ter ninguém que a proteja do assalto de mal-intencionados,
ainda mais seu senhor sendo.
Mas
talvez fosse melhor assim, pois o nobre era capaz de o matar, fosse pai, irmão
ou noivo. Ela não passava de uma criada de baixa condição, por quem ele não
teria qualquer clemência. Atém disso, tinha-se por feia, razão por que nenhum
homem havia ainda atentado nela, e o nobre com certeza que também não, até
àquela ocasião. – Rapariga!, ecoara a sua voz, e ela retesara-se, assustada. Os
seus acessos de mau humor eram sobejamente conhecidos para que os ignorasse. Meu
senhor? Anda cá. O que fazes aqui fora, a estas horas? Fui deitar os restos aos
cães, meu senhor, e regressava para dormir... Dormir, hem? Ela bem percebera,
no seu olhar aceso, a luxúria e o desejo, pobre cego cuja visão o vinho toldara...
Não fosse estar ébrio e jamais atentaria nela! Por favor, meu senhor, deixai-me
regressar, pois estou muito cansada e devo levantar-me antes da alvorada...» In Emílio
Miranda, 1089, O Livro Perdido das Origens de Portugal, Marcador Editora, 2015,
ISBN 978-989-754-141-4.
Cortesia
de MarcadorE/JDACT