sexta-feira, 26 de junho de 2015

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «… dizei ao criado do rei que quinta-feira depois da vigília da Santa Cruz de Setembro, mais para a tarde, me avistarei com ele e que lhe agradeço o tempo que se dispõe ceder-me…»

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Um irmão mal sintonizado
«(…) Depois de quase três anos de governação sossegada, o reinado de Duarte I encontrou-se com o seu verdadeiro destino. Incomodado, sentiu-se desconfortável, transformando pensamentos em imagens sombrias. Isto porque se registam acontecimentos que o ultrapassam, revelações que não consegue confirmar, mas que alimentam pressupostos preocupantes. Surpreende conversas que acabam quando se aproxima, recebe pedidos dos grandes nobres para abandonarem o país, razão mais do que suficiente para o rei pensar que algo está para acontecer. Indisposto com o clima do diz-que-disse, boatos intencionalmente infundados e de origem desconhecida geram no rei uma grande necessidade de descobrir o que até ver não passaria de suspeições. O rei, sempre temente a Deus e à Santa Madre Igreja, sem contudo partilhar os obcecados fundamentalismos do infante Henrique ou os exageros devocionais do infante Fernando, ficava mais perto da pragmática militância cristã do infante Pedro. É dentro deste estado de espírito que receberá, sem entender porquê, um pedido de audiência do irmão mais novo, o qual considerou despropositado, dada a relação próxima que tinha com ele. Deste modo pensando, como resposta, Duarte I mandou ao irmão um mensageiro sem mensagem escrita, pois não pretendia ser demasiado protocolar, quando a pessoa a quem se destinava o recado não era de cerimónias: sua senhoria o nosso amado rei, enviou-nos dizer que vos espera; pediu-me também que vos lembre de que sereis sempre bem recebido, isto porque não percebe o tamanho de tanta formalidade.
Desmontando da alimária, em vénia respeitosa, o cavaleiro ficou a aguardar por uma resposta. Enganou-se. O infante Fernando, um tanto desarmado, pressentiu no recado do rei uma crítica, e deste modo apenas permitiu ao homem desfazer o salamaleque e aguardar pela réplica, porque tinha ainda de pensar na refutação. A resposta deveria ser simples, refutar era desajustado, um sim ou um não chegavam, por que razão se punha o infante Fernando numa posição defensiva e de semblante fechado? Sem aviso, o infante virou as costas ao cavaleiro na direcção da casa, por coincidência localizada nas suas terras de Salvaterra, mesmo ao lado do Paço de Almeirim, que com elas fazia extrema e onde o monarca Duarte se quedava por essa altura. João Rodrigues, escudeiro servil, homem da sua intimidade e confiança, foi atrás dele. Conhecia-lhe os hábitos e toda as sequências do quotidiano, e nesta conformidade o aio não tinha qualquer dúvida sobre o caminho que levavam os seus passos, encontrando-o junto do altar da capela pessoal, dentro da câmara, onde muitas vezes resistia ao sono para em oração se oferecer a Deus. Era uma rotina diária, preenchida de constantes e piedosas rezas, acrescentando à sua extensa lista de divindades outros motivos para rezar.
Sem mais santos para velar, continuava as preces entremeando vigílias com jejuns diários, em nome das construções imateriais que lhe devoravam a cabeça. Dominado pelo sectarismo religioso, entregava a alma a Deus, a Cristo, a todos os santos, também à Igreja, que lhe alimentava o facciosismo e ficava com os bens. João Rodrigues, quase a sua alma gémea, convivia com todo este fervor religioso, ele próprio partilhava os serões e as sentinelas, privando-se do sono para seguir disciplinado o seu amo. É verdade que ultimamente lhe tinha espreitado no semblante um abatimento fora do habitual, já não o cansaço provocado pela fome e pela subtracção do sono, apercebendo-se de que se tratava de uma coisa mais íntima, um sentimento que o fazia sofrer, e já não o êxtase do sofrimento. Preocupado, deteve-se de pé junto da ombreira da porta do quarto, em silêncio, à espera que o infante Fernando pusesse fim à mediação encetada com a divindade e lhe revelasse a resposta que havia de dar ao escudeiro de do irmão Duarte. De onde estava via-lhe sem dificuldade as costas, não tão bem como se o visse à luz do dia, mas o suficiente para lhe ver explícitos os contornos do corpo genuflexado. Reparou como o infante se levantou lentamente e como fez a última saudação, seguida do sinal da cruz, ligações divinas mais eficazes quando feitas sob restrição da claridade, dentro dos templos, que neste caso era um pequeno oratório no interior do quarto. Viu-o depois virar-se, seguir na sua direcção, percorrer a distância de cabeça baixa e olhar no chão, parando para lhe dirigir a palavra mansa, monocórdica, enlevada: dizei ao criado do rei que quinta-feira depois da vigília da Santa Cruz de Setembro, mais para a tarde, me avistarei com ele e que lhe agradeço o tempo que se dispõe ceder-me. Depois, só para João Rodrigues ouvir, lembrou-o: amanhã não posso, é quarta-feira, jejuo todo o dia. A tal quinta-feira chegaria. Duarte I, numa tarde aborrecida cheia de trabalho, viu chegar o irmão até si e saudá-lo pronunciadamente, gerando nele um comentário enfastiado. Senhor, meu irmão, de vós não mereço tamanha reverência, disse-lhe o rei». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.

Cortesia de CAutor/JDACT